Essa semana o apresentador de um programa norturno do SBT postou em seu Twitter que Churchill tinha sido responsável por derrotar os nazistas e que poderia ter derrotado os comunistas “logo no começo”. São tantos os erros em tão poucos caracteres que é preciso desmembrar essa besteira para explicar as coisas por partes.
Churchill chefiou o governo da Grã-Bretanha e tomou difíceis decisões em relação à possível invasão alemã, sendo contra um acordo com Hitler, apesar da pressão que sofreu para ceder. Hesitou, como é humanamente esperado, mas persistiu, e a vitória da Commonwealth na Batalha da Inglaterra – a participação de pilotos poloneses, sul africanos, tchecoslovacos, canadenses, entre outros, foi fundamental – permitiu um respiro aos britânicos. Fora isso, os britânicos tiveram uma boa atuação no Norte da África e no teatro do Mediterrâneo, contribuindo bastante na invasão da península itálica, mas o front italiano permaneceu restrito ao país até o fim da guerra, e nunca foi sequer considerado um segundo front de verdade.
O número de mortos entre os britânicos está na casa dos quase 451 mil, contando civis e militares, nada sequer próximo das perdas do membro dos aliados que realmente foi fundamental para o fim dos anseios de Hitler em conseguir a Lebensraum: a União Soviética. Em um cenário extremamente desfavorável, com carências materiais extremas, lutando sob pressão tanto do inimigo quanto do Exército Vermelho, em termos generalistas nenhum exército nacional durante a Segunda Guerra passou pelo que os soviéticos passaram. As consequências do conflito foram um número de mortos entre militares e civis cuja estimativas mais conservadoras coloca na casa dos 20 milhões, sendo a estimativa mais usada o absurdo número de 27 milhões de pessoas. De acordo com a ONU, atualmente existem 194 países no mundo, e desses, 145 têm uma população menor do que o número de vidas humanas perdidas pela União Soviética no conflito.
Isto posto, gostaria de saber em que universo paralelo Churchill poderia ter “acabado com os comunistas no começo”. A afirmação não faz sentido em nenhum dos possíveis começos ao qual ele se refere: à União Soviética pós-Revolução de outubro, começo da Segunda Guerra Mundial ou começo da Guerra Fria. Se alguém disser que ele se refere à Revolução Russa e a Guerra Civil que se seguiu, basta dizer que isso não faria o menor sentido. Primeiro, porque Churchill não chegava nem perto de ser Primeiro Ministro na época. Segundo: a opinião pública britânica jamais apoiaria uma investida contra a União Soviética depois de mais de quatro anos de uma guerra que, embora vencida, não parecia ter valido à pena dados os enormes sacrifício humanos.
Se o “começo” se refere à Segunda Guerra, tampouco a afirmação faz qualquer sentido. Em 1939 os alemães assinaram o Pacto Molotov-Ribbentrop, que cessou qualquer possibilidade de agressão entre a União Soviética e a Alemanha, quebrado apenas quando esta última invadiu o território soviético em 22 de junho de 1941. Nos momentos iniciais da guerra, a Alemanha invadiu a Polônia pelo oeste, os soviéticos completaram o serviço tomando parte do país pelo leste, e tudo o que os britânicos fizeram foi declarar guerra aos alemães, sem fazer nada de concreto para ajudar seus aliados poloneses por falta de condições de fazê-lo. Pergunto novamente: em que universo paralelo Churchill poderia ter derrotado os “commies” no começo? Começo de quê?
Quando os demais aliados invadiram a costa da Normandia, a União Soviética já estava marchando rumo à Berlim, e esse avanço não tinha a menor condição de ser refreado. Quando a guerra estava em vias de terminar na Europa e os soviéticos chegavam a Berlim, o contingente do Exército Vermelho ultrapassava 2.5 milhão de soldados, seis mil tanques e um número de peças de artilharia que eu desconheço. Depois da tomada da cidade, ainda conseguiram roubar todo o material de estudo dos nazistas sobre a fabricação de armas nucleares. Até os Estados Unidos ponderavam com cuidado a delicada relação com o desconfortável aliado soviético no fim da guerra na Europa, tanto pelo fato da guerra ainda não ter se encerrado no pacífico quanto pelo poderio do Exército Vermelho estacionado no coração da Europa, e com a moral mais alta do que nunca. Não dá pra dizer que esse cenário seria mais favorável aos britânicos para um ataque aos soviéticos.
É difícil dizer, contudo, que “os comunistas ganharam a guerra” de forma descontextualizada. Se o apoio militar dos aliados ocidentais demorou a chegar, não se pode ignorar o fato de que a luta pela hegemonia no Pacífico entre os Estados Unidos e o Japão ajudasse os soviéticos a focar em seu principal problema – ainda que o Japão não tivesse grandes interesses na União Soviética e preferisse atuar no extremo leste asiático da Manchúria rumo ao sul.
Outro ponto importante é que o programa de lend-lease dos Estados Unidos foi fundamental para a vitoria russa. O marechal Zhukov em pessoa afirmou que se não fosse este apoio, a União Soviética não teria vencido sozinha a guerra, ainda que essa declaração seja bastante contestada. Entre os anos de 1941 e 1945, a União Soviética recebeu cerca de 21.621 aviões de combate e 12.439 tanques e armas autopropulsadas. Ainda que possa parecer pouco comparado com a produção soviética do mesmo período (136.364 aviões e 99.507 tanques e armas autopropulsadas), esta foi de importância fundamental nos momentos críticos da guerra, especialmente em 1942. Durante toda a maior parte da guerra os jipes e caminhões importados dos aliados foram fundamentais ao Exército Vermelho no que concerne à estratégia e planejamento. Contudo, o apoio dos aliados não se limitou a equipamento militar. Quanto à provisão de alimentos, os Estados Unidos forneceram cerca de 4.4 milhões de toneladas, com a adição de 200.000 toneladas vindas do Reino Unido e do Canadá. Além disso, foram importados 15.4 milhões de pares de botas, aproximadamente 2.000 locomotivas, 11.155 caminhões de frete, mais de 3.7 milhões de pneus, 90 navios de carga, 98 milhões de metros de roupas de algodão e 57 milhões de metros de roupas de lã.
A guerra era mundial, e por conta disso, nenhum país deveria ter a responsabilidade de encerrá-la sozinho. E, de fato, ninguém o fez. A vitória foi coletiva, fruto de estratégia, investimento financeiro e, principalmente, vidas humanas, para não citar aspectos que não dependiam da vontade ou esforço de ninguém que poderiam tanto ajudar como atrapalhar os esforços aliados, como o inverno russo, as dunas do norte da África ou as montanhas da Itália.
Mas sempre há aqueles sujeitos prontos a procurar um candidato ao prêmio de “funcionário do mês”, em uma busca pelo principal responsável, numa atomização do mérito. Não concordo com esse tipo de postura, mas ela existe à revelia da minha vontade. Logo, diante dessa situação, só me resta afirmar que, se tivermos que escolher um “principal responsável” pela vitória, não há outra resposta possível que não atribuir aos soviéticos este título. A prevalência soviética e o fato de que foram eles quem suportaram os maiores sacrifícios e as maiores privações, sobrevivendo à Operação Barbarossa – a maior mobilização militar da história da humanidade, com um efetivo de mais de 3 milhões de combatentes entre alemães, finlandeses, italianos, romenos, entre outros – é absolutamente incontestável, e negar esse fato histórico por ódio político é um tremendo desserviço. Mas convenhamos, não era de se esperar algo diferente nesse caso.
Fontes e leituras complementares:
I.C.B. Dear and M.R.D. Foot, (org). The Oxford Companion to World War II. New York: Oxford University Press, 1995.
BEEVOR, Antony. Berlim 1945: a queda. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
BERKHOFF, Karel C. Motherland in danger: Soviet propaganda during World War II. London: Harvard University Press, 2012.
MERIDALE, Catherine. Ivan’s War: Life and Death in the Red Army, 1939-1945. New York: Metropolitan Books, 2006.