Por Umberto Eco

Publicado originalmente em inglês sob o título de “Ur-Fascism” na edição de 22 de junho de 1995 da revista “The New York Review of Books”* Tradução por Matheus G. Carlos. Entre [colchetes] estão traduções para termos e expressões que não estavam em inglês no texto original, bem como notas do tradutor.

Em 1942, aos 10 anos, eu recebi o Primeiro Prêmio Provincial dos Jogos Juvenis (uma competição voluntária, mas compulsória, para jovens fascistas italianos – ou seja, para todo jovem italiano). Eu discorri com astúcia retórica sobre o tema “Devemos morrer pela honra de Mussolini e pelo imortal destino da Itália?”. Minha resposta foi positiva. Eu era um garoto esperto.

Eu vivi dois anos de minha juventude entre membros da SS [Schutzstaffel, a milícia nazista], fascistas, republicanos e guerrilheiros atirando uns nos outros, e eu aprendi a desviar de problemas. Desviar de balas era um bom exercício.

Em abril de 1945 os guerrilheiros tomaram o poder em Milão. Dois dias depois eles chegaram na pequena cidade na qual eu estava vivendo. Foi um momento de alegria. A praça principal estava lotada com pessoas cantando e balançando bandeiras, clamando aos gritos por Mimo, o líder guerrilheiro daquela área. Um ex-Marechal da Arma dos Carabineiros, Mimo se juntou aos apoiadores do General Badoglio, sucessor de Mussolini, e perdeu uma perna durante um dos primeiros confrontos contra o que restava das forças armadas de Mussolini. Mimo apareceu na sacada da prefeitura, pálido, apoiando-se em sua muleta, e com uma mão tentou acalmar a multidão. Eu estava esperando por seu discurso porque toda a minha infância foi marcada pelos históricos discursos de Mussolini, cujas passagens mais importantes nós memorizávamos na escola. Silêncio. Mimo falou em uma voz rouca, quase inaudível. Ele disse: “Cidadãos, amigos. Após tantos sacrifícios dolorosos… Aqui estamos. Glória àqueles que morreram em prol da liberdade.”. E foi isso. Ele voltou para dentro. A multidão gritou, os guerrilheiros ergueram suas armas e deram tiros comemorativos. Nós, as crianças, corremos para pegar as cápsulas, itens preciosos, mas eu também aprendi que liberdade de expressão significa estar livre da retórica.

Alguns dias depois eu vi os primeiros soldados americanos. Eles eram afro-americanos. O primeiro Ianque que eu conheci era um homem negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e da Família Buscapé. Os quadrinhos dele eram vivamente coloridos e tinham um cheiro bom.

Um dos oficiais (Major ou Capitão Muddy) era um convidado na vila de uma família cujas duas filhas eram minhas colegas de escola. Eu o conheci no jardim deles, onde algumas moças, ao redor do Capitão Muddy, falavam um francês improvisado. Capitão Muddy sabia um pouco de francês também. Minha primeira imagem dos libertadores americanos foi, portanto, – após tantas faces pálidas em camisas negras – de um homem negro culto de uniforme verde-amarelado dizendo: “Oui, merci beaucoup, Madame, moi aussi j’aime le champagne…” [Sim, muito obrigado, senhora, eu também amo champanhe…]. Infelizmente não havia champagne, mas Capitão Muddy me deu meu primeiro pedaço de chiclete de hortelã da marca Wrigley e eu passei a mascar durante o dia todo. À noite eu colocava minha bola de chiclete dentro de um copo com água para que ela estivesse fresca pela manhã.

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Libertação de Roma, junho de 1944

Em maio nós escutamos que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação curiosa. Haviam me dito que guerra permanente era a situação normal para um jovem italiano. Nos meses que se seguiram eu descobri que a Resistência não era um fenômeno apenas local, mas europeu. Eu aprendi novas, excitantes palavras como réseau [rede], maquis [guerrilha rural], armée secrète [exército secreto], Rote Kapelle [Orquestra vermelha], Gueto de Varsóvia. Eu vi as primeiras fotos do Holocausto, assim entendendo seu significado antes de conhecer a palavra. Eu me dei conta do quê havíamos sido libertos.

Atualmente em meu país há pessoas que se perguntam se a Resistência teve um impacto militar real no curso da guerra. Para minha geração esta questão é irrelevante: nós imediatamente entendemos os significados moral e psicológico da Resistência. Para nós era uma questão de honra sabermos que nós, os europeus, não esperamos passivamente pela libertação. E para os jovens americanos que pagavam com o próprio sangue para restaurar nossa liberdade tinha algum valor saber que além da linha de fogo havia europeus pagando adiantado sua parcela da conta.

Atualmente em meu país há quem diga que o mito da Resistência era uma mentira comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como se fosse propriedade deles, já que eles tiveram um papel de destaque nela; mas eu lembro de guerrilheiros com lenços de diferentes cores. Colado no rádio, eu passei minhas noites – as janelas fechadas, o blecaute dando espaço para um solitário halo de luz – ouvindo as mensagens enviadas pela Voz de Londres para os guerrilheiros. Elas eram crípticas e poéticas ao mesmo tempo (O sol também se levanta, As rosas desabrocharão) e a maioria delas eram “messaggi per la Franchi” [“mensagens para Franchi”]. Alguém me confidenciou que Franchi era o líder da rede clandestina mais poderosa no noroeste da Itália, um homem de coragem lendária. Franchi se tornou meu herói. Franchi (cujo nome real era Edgardo Sogno) era um monarquista, tão fortemente anticomunista que após a guerra ele se juntou a grupos de extrema-direita e foi incriminado por colaborar em um projeto de golpe de estado reacionário. Quem se importa? Sogno continua a ser o herói dos sonhos de minha infância. A luta pela libertação era uma ação comum a pessoas de diferentes afiliações.

Atualmente em meu país há alguns que dizem que a Guerra de Libertação foi um período trágico de divisão, e tudo de que precisamos é de reconciliação. A memória daqueles anos terríveis deveria ser reprimida, refoulée, verdrängt. Mas Verdrängung [supressão] causa neurose. Reconciliação pode significar compaixão e respeito por aqueles que, de boa fé, lutaram suas batalhas pessoais, mas perdoar não significa esquecer. Eu posso até aceitar que Eichmann [Adolf Eichmann, tenente-coronel nazista responsável pelas políticas de deportação e execução de judeus] verdadeiramente acreditava em sua missão, mas eu não posso dizer “Ok, volte e faça de novo.”. Nós estamos aqui para lembrar o que aconteceu e dizer solenemente que “Eles” não devem fazer aquilo de novo.

Mas quem são Eles?

Se pensarmos sobre os governos totalitários que governaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial nós podemos facilmente dizer que seria difícil para eles reaparecerem sob a mesma forma em diferentes circunstâncias históricas. Se o fascismo de Mussolini se baseava na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do Destino Imperial de Roma, em um desejo imperialista de conquistar novos territórios, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada em camisas negras, na rejeição da democracia parlamentar, no antissemitismo, então eu não tenho dificuldade em reconhecer que hoje a Alleanza Nazionale [Aliança Nacional] italiana, nascida a partir do partido fascista fundado no pós-guerra, MSI [Movimento Social Italiano], e que definitivamente era um partido de direita, tem pouco haver com o antigo fascismo. Na mesma linha, apesar de eu estar bastante preocupado com os vários movimentos de características nazistas que tem aparecido aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, eu não penso que o nazismo, em sua forma original, está prestes a reaparecer como um movimento de porte nacional.

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Mussolini e Hitler

Mesmo assim, apesar de regimes políticos poderem ser derrubados, e ideologias poderem ser criticadas e renegadas, por trás de um regime e sua ideologia sempre há uma forma de pensar e sentir, um grupo de hábitos culturais, de instintos obscuros e impulsos insondáveis. Há outro fantasma assombrando a Europa (e até mesmo outras partes do mundo)?

Ionesco [dramaturgo nascido (1909-1994) na Romênia] certa vez disse que “apenas palavram importam e o resto é puro falatório”. Hábitos linguísticos frequentemente são sintomas importantes de sentimentos subjacentes. Sendo assim, é importante perguntar por que não apenas a Resistência como também a Segunda Guerra Mundial geralmente foram definidas em todo o mundo como uma luta contra o fascismo. Se você reler “Por Quem os Sinos Dobram” de Hemingway você descobrirá que Robert Jordan identificava seus inimigos como fascistas, mesmo quando ele estava tratando sobre os falangistas espanhóis. E para FDR [Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos da América de 1933 a 1945] “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e a mão fantasma do despotismo que ele representa.”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os americanos que lutaram na guerra espanhola foram chamados de “antifascistas prematuros” – no sentido de que lutar contra Hitler na década de quarenta era um dever moral de todo bom americano, mas lutar contra Franco [Francisco Franco, general que governou a ditadura espanhola de 1939 a 1975] tão cedo, na década de trinta, cheirava mal porque foi algo feito principalmente por comunistas e outras pessoas de esquerda… Por que uma expressão como porco fascista foi usada por americanos radicais trinta anos depois para se referir a um policial que não aprovava que fumassem? Por que eles não disseram: porco Cagoulard [membro do La Cagoule, grupo francês fascista, terrorista e anticomunista], porco falangista [seguidor do falangismo, ideologia fascista que foi a base da ditadura espanhola de Franco], porco ustaše [em referência aos Ustaše, grupo croata fascista e terrorista ativo de 1929 a 1945], porco Quisling [em referência a Vidkun Quisling, militar norueguês fascista que se associou aos nazistas alemães e governou a Noruega de 1942 a 1945], porco nazista?

“Minha Luta” [livro autobiográfico escrito por Adolf Hitler] é um manifesto de um programa político completo. O nazismo tinha uma teoria de racismo e do povo escolhido Ariano, uma noção precisa de arte degenerada (entartete Kunst), uma filosofia de vontade de poder [Wille zur Macht] e do Ubermensch [o “super-homem” alemão]. O nazismo era incontestavelmente anticristão e neopagão, enquanto o materialismo dialético de Stalin (a versão oficial do marxismo soviético) era descaradamente materialista e ateísta. Se por totalitarismo se quer dizer um regime que subordina todo ato do indivíduo ao Estado e a sua ideologia, então tanto o nazismo como o stalinismo eram regimes verdadeiramente totalitários.

O fascismo italiano certamente era uma ditadura, mas não era totalmente totalitário, não porque era brando mas sim por causa da fraqueza filosófica de sua ideologia. A despeito do senso comum, o fascismo na Itália não tinha uma filosofia particular. O artigo sobre fascismo assinado por Mussolini na Treccani Encyclopedia foi escrito ou essencialmente inspirado por Giovanni Gentile, mas ele refletia uma noção pós-Hegeliana do Estado Absoluto e Ético que nunca foi completamente posta em prática por Mussolini. Mussolini não tinha filosofia: ele tinha apenas retórica. Ele era um militante ateísta no começo e depois assinou o acordo com a Igreja [Tratado de Latrão] e recebeu os bispos que abençoavam os partidários fascistas. Nos seus anos de juventude anticlerical, de acordo com o que provavelmente é uma lenda, ele pediu a Deus, de forma a provar Sua existência, que o atingisse com um raio ali mesmo, onde estava. Após isto, Mussolini passou a sempre citar o nome de Deus em seus discursos, e não se importava de ser chamado de Homem de Providência.

O fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita a tomar o poder em um país europeu, e todos os outros movimentos similares posteriormente encontraram um arquétipo no regime de Mussolini. O fascismo italiano foi o primeiro a estabelecer uma liturgia militar, um folclore, até mesmo uma forma de se vestir – muito mais influente, com suas camisas negras, do que Armani, Benetton ou Versace seriam. Apenas na década de trinta foi que os movimentos fascistas apareceram, com Mosley, na Grã-Bretanha, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até mesmo na América do Sul. Foi o fascismo italiano que convenceu vários líderes europeus liberais que o novo regime estava conduzindo uma reforma social interessante, e que estava fornecendo uma alternativa levemente revolucionária à ameaça comunista.

Apesar disso, prioridade histórica não me parece razão suficiente para explicar por que a palavra fascismo se tornou uma sinédoque, isto é, uma palavra que poderia ser utilizada para diferentes movimentos totalitários. Não é porque o fascismo continha em si mesmo, falando de sua forma mais pura, todos os elementos de outras formas posteriores de totalitarismo. Pelo contrário, o fascismo não tinha uma forma mais pura. O fascismo era um totalitarismo confuso, uma colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas, um emaranhado de contradições. Pode alguém imaginar um movimento verdadeiramente totalitário que foi capaz de combinar monarquia com revolução, o Exército Real com a milícia pessoal de Mussolini, a concessão de privilégios à Igreja com uma educação estatal que exaltava a violência, controle estatal absoluto com um livre mercado? O Partido Fascista nasceu se gabando de ter trazido uma nova ordem revolucionária; mas ele era financiado pelos mais conservadores donos de terra que esperavam dele uma contrarrevolução. Em seu princípio o fascismo era republicano. Apesar disso ele sobreviveu por vinte anos proclamando sua lealdade à família real enquanto o Duce (indiscutivelmente o Líder Máximo) andava de mãos dadas com o Rei, a quem ele também ofereceu o título de Imperador. Mas quando o Rei demitiu Mussolini em 1943, o partido reapareceu dois meses depois, com apoio alemão, sob a forma de uma república “social”, reciclando seu antigo roteiro revolucionário, agora enriquecido com toques quase jacobinos.

Havia apenas uma arquitetura nazista e apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, então não havia espaço para Mies van der Rohe. De forma similar, sob o governo de Stalin, se Lamarck estava certo então não havia espaço para Darwin. Na Itália certamente havia arquitetos fascistas, mas próximo aos seus pseudo-Coliseus havia vários prédios novos inspirados no racionalismo modernista de Gropius.

Não havia um Zhdanov [membro do Partido Comunista Soviético e ideólogo cultural da União Soviética] fascista definindo uma estrita linha cultural. Na Itália havia dois importantes prêmios para arte. O Premio Cremona era controlado por um fascista fanático e inculto, Roberto Farinacci, que encorajava arte como propaganda. (Eu consigo lembrar de pinturas com títulos como “Ouvindo pelo rádio o discurso do Duce” ou “Estados mentais criados pelo fascismo”.) O Premio Bergamo era patrocinado pelo fascista culto e razoavelmente tolerante Giuseppe Bottai, que protegia tanto o conceito de arte pela arte como os vários tipos de arte avant-garde que haviam sido banidos como corruptos e de mensagem comunista codificada na Alemanha.

O poeta nacional era D’Annunzio, um almofadinha que na Alemanha ou na Rússia teria sido mandado para o pelotão de fuzilamento. Ele foi empregado como bardo do regime por causa de seu nacionalismo e do seu culto ao heroísmo – que de fato estavam extremamente misturados com influências da decadência fin de siècle [final do século] francesa.

Veja o futurismo, por exemplo. Alguém poderia pensar que ele seria considerado um exemplo de entartete Kunst [arte degenerada] junto ao expressionismo, cubismo e o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas; eles incentivaram a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial por motivos estéticos; eles celebravam velocidade, violência e atitudes arriscadas, coisas que de alguma forma pareciam se conectar ao culto fascista de juventude. Enquanto o fascismo se identificava com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um carro era mais bonito que a Vitória de Samotrácia [escultura de 200-190 AEC que representa a deusa grega Nice], e queria matar a luz da lua) foi indicado mesmo assim a membro da Academia Italiana, que tratava a luz da lua com muito respeito.

Muitos dos futuros partidários e dos futuros intelectuais do Partido Comunista foram educados pela GUF [sigla para Grupo Universitário Fascista], a associação dos estudantes universitários fascistas, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Estas associações se tornaram uma espécie de caldeirão intelectual onde novas ideias circulavam sem qualquer controle ideológico real. Não é que os homens do partido tolerassem ideias radicais, mas sim que poucos deles tinham as ferramentas intelectuais para controlá-las.

Durante aqueles vinte anos, a poesia de Montale e de outros autores associados ao grupo chamado Ermetici [Hermético] foi uma reação ao estilo bombástico do regime, e estes poetas tinham permissão para desenvolver seus protestos literários a partir do que era visto como uma torre de marfim. O espírito dos poetas Ermetici era exatamente o contrário do culto fascista de otimismo e heroísmo. O regime tolerou a flagrante, apesar de que socialmente imperceptível, discordância deles simplesmente porque os fascistas não prestavam atenção em tal linguagem arcaica.

Tudo isto não significa que o fascismo italiano era tolerante. Gramsci ficou preso até sua morte; os líderes da oposição Giacomo Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados; a impressa livre foi abolida, os sindicatos foram desmantelados, e os dissidentes políticos foram confinados em ilhas remotas. O poder legislativo virou mera ficção e o poder executivo (que controlava tanto o judiciário como a mídia de massa) aprovava novas leis diretamente, entre elas leis de preservação de raça (o gesto italiano formal de apoio ao que viria ser o Holocausto).

A situação contraditória que estou descrevendo não era resultado de tolerância mas de desconjunção política e ideológica. Mas era uma desconjunção rígida, uma confusão estruturada. O fascismo era filosoficamente desarticulado, mas emocionalmente ele estava firmemente ligado a bases arquetípicas.

Então chegamos ao meu segundo ponto. Havia apenas um nazismo. Não podemos classificar o falangismo hipercatólico de Franco como nazismo, pois o nazismo era fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão. Mas o jogo do fascismo pode ser jogado de várias formas sem que o nome do jogo mude. A noção de fascismo não é diferente da noção de Wittgenstein de jogo. Um jogo pode ser competitivo ou não, pode requerer alguma habilidade especial ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Jogos são diferentes atividades que apresentam apenas alguma “semelhança familiar” entre si, como Wittgenstein diria. Considere a seguinte sequência:

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Suponha que há uma série de grupos políticos em que o grupo 1 apresenta as características “abc”, o grupo 2 apresenta as características “bcd”, e assim por diante. O grupo 2 é similar ao grupo 1 já que eles apresentam duas características em comum, e pelo mesmo motivo 3 é similar a 2 e 4 é similar a 3. Note que 3 também é similar com 1 (eles têm em comum a característica “c”). O caso mais curioso é aquele apresentado por 4, que é obviamente similar a 3 e 2, mas sem qualquer característica em comum com 1. Entretanto, devido à série decrescente e ininterrupta de similaridades entre 1 e 4, ainda resta, por algum tipo de transição ilusória, uma semelhança familiar entre 4 e 1.

Fascismo se tornou um termo para todas as situações porque uma pessoa pode eliminar de um regime fascista uma ou mais características, mas ele ainda poderá ser reconhecido como fascista. Tire o imperialismo do fascismo e você ainda terá Franco e Salazar [Primeiro-Ministro e ditador de Portugal de 1932 a 1968 durante a ditadura do “Estado Novo”]. Tire o colonialismo e você ainda terá o fascismo nos Bálcãs dos ustaše. Adicione ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (coisa que nunca fascinou muito a Mussolini) e você terá Ezra Pound [poeta modernista americano que via no fascismo uma forma de combater o “capitalismo financeiro”]. Adicione o culto a mitologia céltica e o mito do Graal (coisas completamente alienígenas ao fascismo oficial) e você terá um dos mais respeitados gurus fascistas, Julius Evola [filósofo tradicionalista e místico italiano (1898-1974) cujo pensamento serviu de base para as ideologias fascistas e neofascistas].

Mas apesar desta confusão, eu penso que é possível esboçar uma lista de características que são comuns ao que eu gostaria de chamar de Ur-Fascism, ou Fascismo Eterno. Estas características não podem ser organizadas em um sistema; várias delas podem se contradizer, e também são típicas de outros tipos de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas esteja presente para que o fascismo se aglomere ao seu redor.

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1. A primeira característica do Fascismo Eterno é o culto à tradição. O tradicionalismo obviamente é muito mais antigo do que o fascismo. Não apenas ele era comum no pensamento católico contrarrevolucionário após a Revolução Francesa, como também ele nasceu ao final da era helenística, em reação ao racionalismo grego clássico. Na bacia do Mediterrâneo pessoas de diferentes religiões (a maioria delas toleradas pelo panteão grego) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história da humanidade. Esta revelação, de acordo com a mística tradicionalista, permaneceu oculta por um longo tempo sob o véu das línguas esquecidas – nos hieroglifos egípcios, nas runas célticas, nos pergaminhos das religiões pouco conhecidas da ásia.

Esta nova cultura tinha de ser sincretista. Sincretismo não é apenas, como o dicionário diz, “a combinação de diferentes formas de crença e prática”; tal combinação precisa tolerar contradições. Cada uma das mensagens originais contem um pedacinho de sabedoria, e sempre que elas parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis é apenas porque todas estão fazendo alusões, de forma alegórica, a mesma verdade primordial.

Como consequência, não pode haver aprimoramento do conhecimento. A verdade já foi revelada de forma definitiva, e nós podemos apenas continuar a interpretar sua mensagem obscura.

Uma pessoa precisa apenas olhar a doutrina de qualquer movimento fascista para encontrar os pensadores tradicionalistas mais importantes. A gnose [sistema filosófico] nazista estava repleta de elementos tradicionalistas, sincretistas, ocultistas. A fonte mais influente das teorias da nova direita italiana, Julius Evola, combinou o Santo Graal com Os Protocolos dos Sábios de Sião [Texto conspiratório e antissemita, publicado em 1903 no Império Russo, que se passava por um plano de dominação mundial por parte dos judeus. O texto serviu como base do antissemitismo na Rússia, Estados Unidos e Alemanha. “Os Protocolos” são um plágio de outro texto escrito pelo francês Maurice Joly e publicado em 1865 em Bruxelas, na Bélgica], alquimia com o Sacro Império Romano-Germânico. O fato de que a direita italiana, de forma a mostrar que tinha a mente aberta, recentemente ampliou sua doutrina de forma a incluir os trabalhos de De Maistre, Guenon e Gramsci, é uma forma óbvia de sincretismo.

Se você procurar nas prateleiras que nas livrarias americanas estão categorizadas como New Age [Nova Era], você pode achar até mesmo Santo Agostinho que, até onde sei, não era um fascista. Mas combinar Santo Agostinho com Stonehenge – isto sim é um sintoma de Fascismo Eterno.

2. Tradicionalismo implica em rejeição do modernismo. Tanto fascistas como nazistas glorificavam a tecnologia, enquanto pensadores tradicionalistas geralmente a rejeitam como negação dos valores espirituais tradicionais. Entretanto, apesar de que o nazismo tinha orgulho de suas conquistas industriais, sua glorificação do modernismo era apenas a superfície de uma ideologia baseada em Sangue e Solo (Blut und Boden) [ideologia racista e antissemita que promovia uma vida campestre, a qual se dizia estar ligada diretamente à linhagem (“sangue”/”blut”) alemã, e, portanto, sendo os alemães os únicos com direito à terra]. A rejeição do mundo moderno estava disfarçada na forma de uma refutação do modo de vida capitalista, mas ela dizia respeito principalmente a uma rejeição do Espírito de 1789 (e de 1776, obviamente). O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o começo da depravação moderna. Neste sentido o Fascismo Eterno pode ser definido como irracionalismo.

3. Irracionalismo também depende do culto a ação pela ação. Sendo a ação bela por si só, ela precisa ser tomada antes de, ou sem, qualquer reflexão prévia. Pensar é uma forma de se afeminar. Portanto, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Desconfiança do mundo intelectual sempre foi um sintoma de Fascismo Eterno, desde a declaração supostamente feita por Goering (“Quando escuto falar de cultura eu pego minha arma”) ao uso frequente de expressões como “intelectuais degenerados”, “espertalhões”, “esnobes intelectuais”, “universidades são um ninho de comunistas”. Os intelectuais fascistas oficiais eram engajados principalmente em atacar a cultura moderna e os intelectuais liberais como traidores dos valores tradicionais.

4. Nenhuma crença sincrética consegue suportar criticismo analítico. O espírito crítico faz distinções, e distinguir é um sinal de modernismo. Na cultura moderna a comunidade científica valoriza a discordância como forma de aprimorar o conhecimento. Para o Fascismo Eterno, discordância é traição.

5. Além disso, discordância é um sinal de diversidade. O Fascismo Eterno cresce e busca o consenso ao explorar o medo natural da diferença. O primeiro apelo de um fascista ou de um movimento fascista primitivo é um apelo contra os intrusos. Desta forma, o Fascismo Eterno é racista por definição.

6. O Fascismo Eterno provém de frustração individual ou social. É por isto que uma das características mais comuns do fascismo histórico era o apelo a uma classe média frustrada, uma classe sofrendo com uma crise econômica ou com sentimentos de humilhação política, e assustada pela pressão de grupos sociais mais baixos. Nos dias de hoje, com os antigos “proletários” se tornando pequenos burgueses (e estando o lumpen [classe trabalhadora desprovida de consciência política] majoritariamente excluído do cenário político), o fascismo de amanhã encontrará audiência nesta nova maioria.

7. Para aquelas pessoas que se sentem desprovidas de uma identidade social clara, o Fascismo Eterno diz que o único privilégio delas é aquele que é o mais comum, terem nascido no mesmo país. Esta é a origem do nacionalismo. Além disso, os únicos que podem prover uma identidade a uma nação são seus inimigos. Desta forma, na raiz da psicologia do Fascismo Eterno há uma obsessão com uma conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores precisam se sentir encurralados. A forma mais fácil de solucionar a conspiração é apelar para xenofobia. Mas a conspiração também precisa partir de dentro: os judeus geralmente são o melhor alvo porque eles têm a vantagem de estarem dentro e fora ao mesmo tempo. Nos EUA, um exemplo proeminente da obsessão com uma conspiração pode ser encontrado em The New World Order [A Nova Ordem Mundial], de Pat Robertson [livro conspiratório em que Pat Robertson, pastor evangélico estadunidense, “revela” um plano de dominação mundial sob controle de bancos pertencentes a, entre vários grupos, judeus, maçons e Illuminati], mas, como vimos recentemente, há muitos outros.

8. Os seguidores precisam se sentir humilhados pela riqueza e pela força abundantes de seus inimigos. Quando eu era um garoto me ensinaram a pensar nos ingleses como “as pessoas que fazem cinco refeições”. Eles comiam com mais frequência do que os pobres, mas sóbrios, italianos. Judeus são ricos e ajudam uns aos outros através de uma rede secreta de assistência mútua. Entretanto, os seguidores precisam ser convencidos de que eles podem superar os inimigos. Desta forma, através de uma mudança contínua de foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos. Governos fascistas estão condenados a perder guerras porque, por essência, eles são incapazes de julgar de forma objetiva a força do inimigo.

9. Para o Fascismo Eterno não há luta pela vida, mas sim que a vida é vivida para a luta. Desta forma, pacifismo é o mesmo que dormir com o inimigo. [Pacifismo] É ruim porque a vida é guerra permanente. Isto, entretanto, leva a um complexo de Armagedom. Já que os inimigos precisam ser derrotados, é preciso que haja uma batalha final, após a qual o movimento terá controle sobre o mundo. Mas tal “solução definitiva” implica em uma era futura de paz, uma Era de Ouro, o que contradiz o princípio de guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver este dilema.

10. O elitismo é uma característica comum a qualquer ideologia reacionária, na medida em que elas são fundamentalmente aristocráticas, e aristocracia e elitismo militar implicam de forma cruel em desprezo pelos mais fracos. O Fascismo Eterno só pode advogar por um elitismo popular. Todo cidadão é uma das melhores pessoas do mundo, os membros do partido são os melhores entre os cidadãos, todo cidadão pode (ou deseja) se tornar um membro do partido. Mas não pode haver nobres sem plebeus. De fato, o Líder, sabendo que seu poder não lhe foi delegado de forma democrática mas conquistado através da força, também sabe que sua força se baseia na fraqueza das massas; eles são tão fracos que precisam e merecem ter um líder. Já que o grupo é organizado hierarquicamente (de acordo com um modelo militar), todo líder em um cargo superior despreza seus subordinados, e cada um deles também despreza aqueles que lhe são inferiores. Isto reforça o senso de elitismo de massa.

11. Por tal perspectiva todos são educados para se tornarem heróis. Em toda mitologia o herói é um ser atípico, mas na ideologia do Fascismo Eterno o heroísmo é a norma. O culto ao heroísmo está estreitamente ligado com o culto à morte. Não é por acaso que o lema dos falangistas era “Viva la Muerte” [“Vida Longa à Morte”, como aponta Umberto Eco]. Em sociedades não-fascistas conta-se ao público laico que a morte é desconfortável mas precisa ser encarada com dignidade; aos crentes, conta-se que ela é uma forma dolorosa de atingir uma felicidade sobrenatural. Por contraste, o herói do Fascismo Eterno anseia ter uma morte heroica. Em sua impaciência por morrer, ele envia outras pessoas para a morte com mais frequência.

12. Já que tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis, o Fascista Eterno transfere sua vontade de poder para assuntos de cunho sexual. Esta é a origem do machismo (que implica tanto em desprezo pelas mulheres como em intolerância e condenação de hábitos sexuais fora do padrão, da castidade à homossexualidade). Já que até o sexo é um jogo difícil, o herói do Fascismo Eterno tende a brincar com armas – e fazer isto se torna um exercício de substituição fálica.

13. O Fascismo Eterno se baseia em um populismo seletivo, um populismo qualitativo, alguns diriam. Numa democracia, os cidadãos possuem direitos individuais, mas os cidadãos em sua coletividade têm um impacto político apenas de um ponto de vista quantitativo – uma pessoa segue a decisão da maioria. Para o Fascismo Eterno, entretanto, indivíduos como indivíduos não possuem direitos, e o Povo é visto como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a Vontade Comum. Já que um grande grupo de pessoas não tem como ter uma vontade comum, o Líder se passa por seu intérprete. Tendo perdido o poder de delegar, os cidadãos não agem; eles são convocados apenas para interpretar o papel de Povo. Desta forma, o Povo é apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo nós não precisamos mais da Piazza Venezia em Roma ou do Estádio de Nuremberg. Há em nosso futuro um populismo de TV ou de internet, em que a resposta emocional de um grupo pequeno de cidadãos pode ser apresentada e aceita como sendo a Voz do Povo.

Por causa de seu populismo qualitativo o Fascismo Eterno precisa ser contra governos parlamentares “podres”. Uma das primeiras frases proferidas por Mussolini no parlamento italiano foi “Eu poderia ter transformado este lugar surdo e sombrio em um acampamento para meus manípulos”– os “manípulos” eram uma subdivisão da tradicional Legião Romana. De fato, ele rapidamente encontrou acomodações melhores para seus manípulos, mas pouco depois ele fechou o parlamento. Sempre que um político suscita dúvida sobre a legitimidade de um parlamento por que ele não representa mais a Voz do Povo, nós podemos sentir o cheiro do Fascismo Eterno.

14. O Fascismo Eterno fala Novilíngua. A Novilíngua foi inventada por Orwell, em 1984 [aqui, “1984” é o título do livro de George Orwell, e não uma data de publicação], como a língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês. Mas elementos do Fascismo Eterno são comuns a diferente formas de ditaduras. Todos os livros escolares nazistas ou fascistas fizeram uso de um vocabulário empobrecido e de uma sintaxe elementar, de forma a limitar as ferramentas para raciocínio complexo e crítico. Mas nós precisamos estar prontos para identificar outros tipos de Novilíngua, mesmo que eles se apresentem na forma inocente de um programa de palco.

Na manhã de 27 de julho de 1943 me contaram que, de acordo com notícias no rádio, o fascismo havia desmoronado e Mussolini estava preso. Quando minha mãe mandou eu ir comprar o jornal, eu vi que os jornais na banca mais próxima tinham títulos diferentes. Além disso, após ver as manchetes, eu percebi que cada jornal dizia uma coisa diferente. Eu comprei um deles, às cegas, e li a mensagem na primeira página assinada por cinco ou seis partidos diferentes – entre eles o Democrazia Cristiana [Democracia Cristã], o Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partito d’Azione [Partido de Ação] e o Partido Liberal.

Até aquele momento, eu acreditava que havia apenas um partido em toda a Itália e que era o Partito Nazionale Fascista [Partido Nacional Fascista]. Naquele momento eu estava descobrindo que em meu país podia haver vários partidos ao mesmo tempo. Já que eu era um garoto esperto, eu imediatamente percebi que tantos partidos não podiam ter nascido de um dia pro outro, e eles deveriam existir há algum tempo como organizações clandestinas.

A mensagem na página frontal celebrava o fim da ditadura e o retorno da liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” – naquele momento eu as estava lendo pela primeira vez em minha vida. Eu renasci como um homem livre ocidental em virtude destas novas palavras.

Nós precisamos nos manter alertas para que o sentido destas palavras não seja esquecido novamente. O Fascismo Eterno ainda nos rodeia, as vezes sem uniforme. Seria tão mais fácil para nós se aparecesse novamente no cenário mundial alguém dizendo “Eu quero reabrir Auschwitz, eu quero os Camisas Negras desfilando novamente nas praças italianas.”. A vida não é assim tão simples. O Fascismo Eterno pode chegar usando os disfarces mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para qualquer uma de suas instâncias – a qualquer dia, em qualquer parte do mundo. É válido relembrar as palavras de Franklin Roosevelt de 4 de novembro de 1938: “Eu ouso dizer que, se a democracia americana deixar de progredir como uma força viva, buscando dia e noite por meios pacíficos melhorar a vida de nossos cidadãos, o fascismo ganhará força em nossa terra.”. Liberdade e libertação são tarefas sem fim.

Permita-me terminar com um poema de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell’acqua della fonte
La bava degli impiccati.

Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull’erba secca del prato
I denti dei fucilati.

Mordere l’aria mordere i sassi
La nostra carne non è più d’uomini
Mordere l’aria mordere i sassi
Il nostro cuore non è più d’uomini.

Ma noi s’è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l’hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.

[No parapeito da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados.

No pavimento do mercado
As unhas dos fuzilados
Na grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados.

Mordendo o ar mordendo as pedras
Nossa carne não mais humana
Mordendo o ar mordendo as pedras
Nosso coração não mais humano.

Mas lemos nos olhos dos mortos
Que na terra faremos a liberdade
E cerrada no punhos dos mortos
A justiça que se fará.]

* Versão original em inglês utilizada para esta tradução (visitado pela última vez em 8 de outubro de 2018): https://www.nybooks.com/articles/1995/06/22/ur-fascism/