Posso estar me enganando sob uma perspectiva simplista acerca de uma observação que faço há muito tempo, mas me parece que o período conhecido como Idade Média é um dos que mais desperta curiosidade, principalmente nos jovens de nossa geração. Estes cresceram entre jogos ambientados em mundos fantásticos, RPG e demais formas de entretenimento que bebem desta época como inspiração.

Eis que Jacques Le Goff, um dos maiores medievalistas do mundo enquanto vivo, escreveu em 1964 um de seus livros mais importantes sobre o assunto, que teve como objetivo discorrer acerca de alguns dos principais aspectos deste período que tanto nos fascina por suas particularidades. O livro de hoje é A civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff.

Esqueça qualquer cronologia ao ler este livro. Ao contrário de livros que seguem uma linha cronológica bem definida, de acordo com o calendário cristão ocidental, o livro ignora completamente a ordem dos acontecimentos. Até porque, como era de se esperar de um membro da Annales, o livro não foca em grandes acontecimentos. Foca nos aspectos políticos, religiosos, econômicos, geográficos e sociais do ocidente medieval.

Aliás, é preciso ressaltar o título desta obra. Grande parte dos medievalistas costuma não apelar para o termo “Idade Média”, por este ser demasiado genérico. Levando em conta que se trata de um período definido – e esta definição por si só já é controversa, pois embora a Idade Média oficialmente tenha terminado no século XV, muitos lugares mantiveram características fortes desta época até o século XIX – por eventos específicos, somos ludibriados por nossa mente, que se esquece de levar em consideração que a história da Idade Média é quase em sua totalidade eurocêntrica. Os demais povos de nosso mundo tiveram suas histórias paralelamente à Europa, e isso não pode ser ignorado por nenhum historiador que pretenda sequer considerar-se um medievalista.

A primeira parte do livro foca na transição do mundo antigo para a cristandade medieval. Seu primeiro capítulo, por exemplo, discute as invasões bárbaras, cuja importância para a formação do ocidente medieval é inegável. Sua inserção nos territórios do mediterrâneo enterrou diversos costumes, crenças, conhecimento; contudo, trouxe avanços em áreas diversas, como a metalurgia. A principal dúvida que o capítulo tenta abordar é: a transição da Antiguidade Clássica pra Idade Média foi uma continuidade ou uma ruptura?

Mais adiante, o livro passa por diversos fatos importantes para a formação do ocidente medieval, tal qual a dinastia carolíngia, a formação da cristandade, o renascimento urbano e o conhecido sistema feudal. Todos de forma detalhada, e sempre com algum destaque na etimologia de diversos termos que até hoje nos são conhecidos, apesar de seus significados terem mudado, algo que ocorre não só nesta primeira parte, mas durante todo o livro. A exemplo, podemos citar o trecho do livro em que o autor nos conta a origem do termo “urbano”, oriundo da palavra urbe, que significava “cidade”. Em contrapartida, a palavra Rusé o que dá nome ao campo. Seus habitantes são assim chamados de rustici (palavra que significa algo como grosseiro), palavra que dá origem ao termo “rústico”. A primeira parte termina com a crise na cristandade.

A segunda parte ignora a cronologia da primeira – que por si só já não era tão evidente – e volta a questões do conflito antiguidade/idade média. Desta vez, abordando a questão através dos conflitos religiosos entre paganismo e cristianismo.

As estruturas espaciais não são ignoradas. Possivelmente influenciado de forma direta pelo pensamento de Fernand Braudel, que não se esquecia do importante papel da Geografia na história, Le Goff trabalha com ambientes da época. Fala por exemplo da floresta, que era um lugar de aventuras, perigos inimagináveis e perdição. Eram praticamente consideradas como grandes desertos, que muitas histórias renderam. O tempo tampouco é deixado de lado.

A vida material é outro ponto importante da obra, pois tem uma importância vital em qualquer civilização. Determinados ou determinantes, os aspectos materiais possuem uma relação direta com as mentalidades, que também são magistralmente abordadas no livro.

Existem muitos livros a respeito desta época que ainda nos é tão misteriosa em muitos aspectos. Muito do que sabemos do período é oriundo das traiçoeiras histórias oficiais. Alguns outros conhecimentos provém da hagiografia, ou de relatos que por motivos variados foram registrados para a posteridade. Portanto, qualquer obra sobre este período deve ser sempre adquirida com cautela. Esta obra certamente é uma das que pode figurar na biblioteca de qualquer historiador, medievalista ou não. O resumo de tantos aspectos pertinentes da civilização ocidental medieval em uma mesma obra não é tão simples de ser encontrado de forma tão eficiente quanto neste livro.

É verdade que a ausência total de uma cronologia pode estranhar jovens historiadores, acostumados com os livros didáticos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Quem não possui algum contato mais profundo com a História, e porque não com a Antropologia, pode ter dificuldades de se adaptar a questões que nestes mesmos livros didáticos são ignoradas ou muito superficialmente abordadas, como as mentalidades. Entretanto, para aqueles que querem compreender melhor este período ainda tão pertinente em nossas mentes, esta obra – longe de ser a mais completa do gênero, mas detalhada com êxito – é uma aquisição de peso. Recomendado.