Obra de Tabajara Ruas é um faroeste ambientado no fim da Revolução Federalista

Por Icles Rodrigues

O escritor Tabajara Ruas, autor de livros como Netto perde sua alma e Gumercindo é bastante conhecido no Rio Grande do Sul, uma vez que boa parte de suas obras é inspirada na história do Rio Grande do Sul, pouco conhecida a nível nacional. Além de seus livros, o autor teve a oportunidade de dirigir alguns filmes inspirados em seus livros, e A cabeça de Gumercindo Saraiva é seu filme mais recente.

A história por trás do filme

A história, embora fictícia, é inspirada em um caso real, mais precisamente a decapitação do cadáver de Gumercindo Saraiva, um estancieiro, caudilho e militar que lutou pelo lado dos revoltosos no que ficou conhecido como Revolução Federalista. Assassinado pelos legalistas, Gumercindo chegou a ser enterrado, mas seu corpo foi exumado e sua cabeça cortada. Ela foi enviada para o então presidente da província do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilho.

A autoproclamada Revolução Federalista, que durou mais ou menos entre 1893 e 1895, teve muito a ver com as ideias conflitantes sobre os rumos do Brasil após a Proclamação da República. Existiam na época – como hoje, diga-se de passagem – grupos políticos que acreditavam que a república deveria ser mais centralizadora, enquanto outros preferiam um governo mais centralizado, onde os estados teriam maior autonomia. A primeira proposta era encampada principalmente pelos dois primeiros presidentes do Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, que queriam um Estado forte o suficiente para que o novo governo estivesse mais estruturado para resistir a quaisquer impulsos de grupos a favor da volta da monarquia.

Vale lembrar que o Brasil nesse momento vivia uma ditadura, que ficou conhecida como República da Espada, e diante desse cenário, o governo federal não estava disposto a dialogar com propostas tão disruptivas como as apresentadas pelos grupos que queriam uma maior descentralização do poder dos presidentes, maior autonomia para os estados da federação e um regime parlamentarista. Este grupo, cujos participantes ficariam conhecidos como federalistas, foi liderado por Gaspar Silveira Martins, líder e fundador do Partido Federalista do Rio Grande do Sul. Seu principal antagonista era Júlio de Castilhos, aliado de Floriano Peixoto cujos aliados ficaram conhecidos como republicanos.

O diretor Tabajara Ruas com parte do elenco

Apesar dessas classificações (federalistas e republicanos), no léxico popular os dois grupos ficaram mais conhecidos por apelidos. Os federalistas liderados por Gaspar Silveira Martins ficaram conhecidos como Gasparistas ou Maragatos, enquanto os republicanos eram os Castilhistas, Pica-paus (por conta das cores de seus uniformes) ou Ximangos.

O termo Maragato, que teria sido aplicado aos Gasparistas como algo pejorativo, acabou sendo visto como positivo e adotado pelos rebeldes. Tendo uma antiga inimizade com Júlio de Castilho, Gumercindo Saraiva, então vivendo no Uruguai, voltou para o Brasil com um pequeno exército e se aliou aos maragatos.

A degola foi uma prática muito empregada nessa guerra civil por ambos os lados, ainda que em alguns casos os números sejam exagerados. Culturalmente era uma prática muito comum para o abate de animais no sul, e acabou influenciando práticas de execução de prisioneiros não apenas na Revolução Federalista, mas também em guerras anteriores e posteriores, como a Guerra dos Farrapos, a Guerra do Paraguai e a Guerra do Contestado. E além disso, os combatentes desses conflitos em geral lutavam em contextos de enorme privação, e era economicamente inviável manter prisioneiros. Mas vale citar que o componente de sadismo era intrínseco: era extremamente comum que os prisioneiros fossem executados em um contexto de muita zombaria e humilhação, que precediam a execução. Estima-se que cerca de mil dos dez mil mortos na Revolução Federalista tenham sido degolados.

“A degola foi uma prática muito empregada nessa guerra civil por ambos os lados, ainda que em alguns casos os números sejam exagerados.”

A dita Revolução Federalista foi uma das diferentes guerras civis que o Brasil teve, mas que nunca são devidamente classificadas como tal pela memória coletiva, talvez para que isso não afete a manutenção do mito de que o Brasil é um país harmonioso e onde a institucionalidade resolveu as questões mais urgentes. Em conflitos do tipo, os revoltosos tendem a se colocar como revolucionários, enquanto o lado da institucionalidade tende a se colocar como legalista e seus adversários como revoltosos de índole duvidosa. Mas em todos esses conflitos ambos os lados parecem concordar em deixar de lado a ideia de uma Guerra Civil, algo que a historiografia dos conflitos brasileiros vez ou outra questiona.

O filme

A cabeça de Gumercindo Saraiva começa já após a morte do caudilho, quando seu corpo foi enterrado provisoriamente em um campo. Um grupo de legalistas o encontra, e por sugestão de um deles, a cabeça do cadáver de Gumercindo é cortada, sob a crença de que dessa forma a alma de Gumercindo jamais teria descanso até que ela fosse enterrada novamente junto de seu corpo. O comandante decide então que ela deve ser enviada a Júlio de Castilhos, e é entregue ao oficial paulista Ramiro de Oliveira, interpretado por Murilo Rosa, que parece entender pouco os ressentimentos locais e o excesso de violência e sadismo, tanto por parte dos profanadores do corpo de Gumercindo quanto por parte dos degoladores de adversários.

Major Ramiro em ação

O filme toma diversas liberdades. Entre elas estão alguns personagens fictícios, como o Major Ramiro de Oliveira, e a passagem pelos cânions da fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que dão aos espectadores cenários incrivelmente belos, mas que não fazem sentido geográfico. O grupo de Ramiro passa por São Miguel das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, e depois simplesmente é transportado para a região dos cânions, que fica fora de rota para um grupo que se dirigia à Porto Alegre. De qualquer forma, penso que esta é uma forma de liberdade artística que mais ajuda do que atrapalha o filme. Dá a ele um verniz mais épico, coisa que é difícil de se fazer em um filme histórico com orçamento limitado em um mercado difícil como o brasileiro.

A maior imprecisão talvez seja o fato de que Ramiro leva a cabeça até Júlio de Castilho, que a recusa, e depois a devolve para Francisco Saraiva, filho de Gumercindo que passa todo o filme tentando recuperá-la e se coloca como o principal antagonista de Ramiro. Na história real a cabeça nunca foi entregue a Júlio de Castilho, tampouco devolvida à família de Gumercindo. Seu corpo até hoje permanece sem a cabeça.

Ainda assim, vale lembrar que o filme é inspirado no livro Gumercindo, do próprio Tabajara Ruas, que busca imaginar o que poderia ter acontecido com a cabeça do caudilho e de qual teria sido a história por trás de toda essa celeuma. A pretensão do autor nunca foi ser fiel nesse ponto em particular.

Sugestão de uso pedagógico

Por ser uma história mais atomizada em indivíduos específicos e explicar pouco o que foi a Revolução Federalista, A cabeça de Gumercindo Saraiva tem pouco valor pedagógico se pensarmos na obra completa. No entanto, há um ou outro momento que pode ter sua utilidade. A meu ver, o trecho que mais se destaca é quando Ramiro e seu acompanhante encontram com uma tropa republicana em busca de cavalos descansados para seguir viagem. Na conversa que se segue, é explicado a Ramiro sobre a degola de alguns prisioneiros inimigos e a execução de alguns soldados da própria tropa como exemplo de punição por indisciplina.

O trecho em questão poderia ser usado para discutir com os estudantes sobre a violência dos dois lados da Revolução Federalista – ainda que o lado maragato raramente seja mostrado de maneira negativa no filme – e sobre o tratamento desumanizante dentro do próprio exército. As forças armadas no Brasil têm um longo histórico de tratamento desumano para com seus próprios praças, com excesso de atos disciplinares inúteis que buscam muito mais demonstrar o poder de oficiais sobre subordinados do que a eficiência dos soldados em sua atuação.

No momento da redação desse texto o filme está disponível completo e em boa qualidade no YouTube, o que permite que qualquer pessoa possa assistir ao filme gratuitamente. Nesse sentido, o filme poderia ser sugerido (mediante a verificação de sua classificação indicativa, é claro) para os estudantes como uma maneira de tentar despertar neles o interesse pelo tema. Filmes, jogos, séries, quadrinhos e afins têm o potencial de despertar a curiosidade de jovens e adultos em temas históricos, mas filmes sobre a nossa história são muito mais raros do que os filmes hollywoodianos que, normalmente, versam sobre a história dos EUA ou de países europeus.

Conclusão

Eu pessoalmente gostei muito do filme. Quero que cada vez mais momentos de nossa história sejam representados no audiovisual, especialmente quando fugirem do eixo Rio-São Paulo. Como é algo caro e desafiador de realizar, é importante que prestigiemos quando realizadores arriscam em contar essas histórias, e por conta disso, sugiro que quem quiser ver esse filme e tenha conta no Prime Video assista o filme lá. Quanto mais streams o filme tiver, mais incentivo para plataformas de streaming em veicular filmes nacionais.