Quanto maior o público que você alcança com divulgação científica, menos lhe dão o direito de falhar.
Já faz algum tempo que se discute na academia a questão da publicidade do conhecimento produzido nas universidades. No Brasil, quando se trata de divulgação por parte da área de História – a única sobre a qual penso que posso falar com alguma propriedade – tem crescido desde, pelo menos, meados de 2011, o debate sobre História Pública. Nos últimos dois anos, venho escutando esse termo em muitos lugares, e inclusive tive a oportunidade de dar uma aula em uma disciplina que leva justamente esse nome na Universidade Federal de Santa Catarina.
A atuação pública por parte de profissionais da História pode ocorrer de várias maneiras, desde projetos ligados a história oral e memória, até a inserção em redes sociais. Há muitos nomes no cenário nacional que mereceriam ser mencionados nesse texto, e citarei alguns mesmo sabendo que muitos não citados mereciam estar aqui.
Poderia citar o trabalho da professora Joelza Ester Domingues, que com seu site, produz muito material acessível que pode tanto ser usado por professores quanto alunos em suas pesquisas para trabalhos escolares. Bruno Leal, editor do site Café História, tem um dos projetos mais longevos do gênero na área de História Pública do Brasil. Filipe Figueiredo é um dos responsáveis pelo podcast de política internacional Xadrez Verbal, tendo atuado durante alguns anos no YouTube sob este mesmo nome e, atualmente, faz parte do cast do canal Nerdologia, um dos maiores canais de divulgação científica do Brasil.
Outro canal que merece menção é o Cantinho da História, cujo perfil no YouTube leva o nome de sua criadora, Anna Gicelle Garcia Alaniz. A meu ver, Anna Gicelle foi uma pioneira no YouTube brasileiro a discutir teoria da História com profundidade. Como destaque recente, posso citar o canal da professora Karine, chamado História em Libras, que tenta apresentar conteúdo de forma coesa e simplificada em libras pra estudantes com deficiência auditiva, especialmente do Ensino Fundamental.
Não advogo o direito de falar por nenhum dos colegas citados acima, nem de tantos outros que acabei não mencionando. O texto abaixo parte de uma impressão individual que, penso eu, deve ter respaldo no trabalho de outros divulgadores científicos em espaços como YouTube e redes sociais em geral.
Em quase três anos de atuação pública – pensando na data em que esse texto está sendo escrito – eu pude encontrar uma série de percalços, e inclusive já comentei brevemente sobre um deles em outro texto do site, mais precisamente sobre monetização do YouTube. No entanto, hoje vou resumir minha fala a um único tema: as consequências de falhar em público, independente do tamanho da falha ou mesmo se, de fato, o que é entendido como falha de fato o é.
Quando você se coloca diante de um público, que pode ser ou não da mesma área que você, sempre serão levantadas dúvidas e questionamentos acerca do que está sendo exposto. É absolutamente normal, seja em ambiente presencial ou não. Ocorre que em ambientes presenciais, há uma tendência ao respeito mútuo e à conversa, o que não necessariamente acontece em um ambiente virtual, onde muitos sujeitos estão mais preocupados em demonstrar estar certos em relação ao erro alheio do que necessariamente estabelecer um diálogo, ou mesmo expor algum conteúdo com respaldo.
É justamente por esse motivo que eu sempre fiz questão de dizer, quando oportuno, que eu não participo de “debates” virtuais, nem faço ou assisto vídeos-resposta que possam vir a ser feitos direcionados a mim. No meu entendimento, os únicos debates virtuais que funcionam na Internet são entre sujeitos que, em certa medida, têm alguma concordância prévia ou alinhamento intelectual não muito distante, além de uma postura de notória maturidade. Infelizmente, isso tem sido pouco comum no YouTube, local onde eu me insiro e sobre o qual posso opinar.
Outro problema desse ambiente de relativa hostilidade do YouTube é o fato de que nós, criadores de conteúdo de matriz acadêmica/científica, somos vistos por parte do público como sujeitos que não têm o direito de falhar.
Eu não estou falando de erros insignificantes, como errar uma data. Raramente esse tipo de falha resulta em algum julgamento severo, pois a maioria do público é suficientemente inteligente para saber que confusões desse tipo acontecem e não necessariamente significa que o produtor de conteúdo não merece credibilidade. No entanto, quando você se mete a falar sobre conceitos acadêmicos que, por vezes, nunca chegaram sequer a algo próximo de um consenso – e cuja definição pode vir a ser muito difícil –, sobre autores cujas obras estão imersas em complexidades que você não dá conta de destrinchar – seja por falta de conhecimento ou pela necessidade de resumir um tema –, ou até sobre assuntos que, na minha modesta opinião, já se tornaram pedantes há muito tempo e não te motivam mais a debater, como a cientificidade ou não das ciências humanas, você imediatamente coloca um alvo em suas costas.
Ok, eu sei que falar em “alvo nas costas” soa excessivamente dramático, até mesmo como metáfora. Contudo, minha experiência tem demonstrado com cada vez mais evidências – já que o público do Leitura ObrigaHISTÓRIA cresce continuamente – que qualquer lacuna, erro, omissão ou até mesmo recorte temático e temporal do vídeo pode virar motivo de ataques ou críticas. Há, claro, críticas construtivas no meio destas, e isso é algo que todo produtor de conteúdo deve reconhecer e valorizar. Mas entre elas há também o eterno questionamento da competência do divulgador. E isso permite um link com uma situação relativa à forma com nossa academia está constituída atualmente: o condicionamento às microespecializações.
Na academia, estudantes e professores são condicionados desde a graduação a optar por um tema de pesquisa com recorte bastante definido e, quando há seguimento na carreira acadêmica, a pesquisa vai ficando cada vez mais encorpada, mas não necessariamente se distancia muito da temática geral inicial. Quando se fala de mestrados e doutorados, o cenário que temos é o de pós-graduandos que passam cerca de seis anos estudando o mesmo tema.
O resultado disso é um profissional qualificado para lidar com algumas necessidades acadêmicas e com vasto conhecimento sobre um tema em particular. Contudo, absolutamente nada garante que este mesmo sujeito tenha condições de lidar com as demandas públicas, caso se meta a “dar a cara à tapa” em um canal de YouTube, página de Facebook, podcast, blog, entre outros tipos de conteúdo possíveis. E quando você decide chegar a um público mais vasto a partir de uma produção contínua – ou seja, algo sem prazo de término –, percebe que não pode passar meses ou anos fazendo um “samba de uma nota só”, falando de um único tema.
Se a temática é bastante abrangente como “História do Brasil”, ou “Política Internacional”, há abertura para isso. São nichos, mas lhe fornecem material o suficiente para produzir conteúdo por anos a fio. Agora, se seu tema de doutorado diz respeito a algo muito mais específico – sobre uma determinada revista em um recorte de cinco anos, um músico durante a ditadura civil-militar, uma comunidade no interior do seu estado ou temas do tipo – fica muito mais difícil produzir conteúdo contínuo sobre o assunto. Logo, para chegar a um público amplo, a variedade se torna uma necessidade, exceto se seu projeto tem como objetivo ser uma produção fechada, como um documentário, série de textos limitada, entre outros.
E como esse pós-graduando lida com a diversidade de temas? A única resposta possível é “depende”. De fato, isso pode variar muito de produtor para produtor, mas é bastante evidente que é impossível ser um especialista em todos os temas, ler todos os clássicos sobre todas as áreas e conhecer a historiografia atualizada sobre todos os debates. Mais ainda, é difícil estabelecer um diálogo interdisciplinar isento de falhas e lacunas, pois se mesmo em nossa área é difícil conhecer tudo, que dirá conhecer as de nossos colegas de ciências humanas…
O professor dentro da universidade, que fala para seus pares e estudantes, é sempre alvo do escrutínio público. No entanto, esse público é extremamente reduzido, limitado aos estudantes que têm aula com ele durante um ano. Se estabelecermos uma meta de quatro turmas por semestre, em uma estimativa um tanto quanto exagerada de quarenta e cinco alunos por turma, este professor deve ter contato com cerca de 360 alunos por ano, salvo palestras e eventos. Este professor, no entanto, está em um ambiente que lhe concede certa aura de autoridade, e muitas vezes as disciplinas que este leciona estão diretamente relacionadas aos seus objetos de pesquisa, os quais ele domina e sobre os quais tem mais propriedade para dissertar a respeito.
O que dizer, então, de quem se propõe a produzir ou dar publicidade a conteúdo para um público de cinco, dez, cinquenta, cem mil espectadores, quando não mais? Como lidar com o fato de que a maioria desse público não apenas não é de sua área, como muitas vezes inclusive a vê com enorme desconfiança? Como reagir a uma parcela do público que está imersa em uma caça às bruxas ideológica, caçando qualquer indício de que você está do “lado do inimigo”, pronto para desqualificar todo seu conteúdo e todos os seus anos de formação baseado no seu achismo obtuso?
Mas não se trata apenas do público leigo. Há uma parcela do público que tem, de fato, formação na área. No entanto, ao invés de tentar apresentar contrapontos ou dúvida de forma respeitosa, questionam sua qualificação como uma forma de massagear o próprio ego em uma masturbação intelectual muitas vezes insipiente. Quando é justamente daqueles que esperamos solidariedade com a empreitada contínua da divulgação científica que vêm algumas das posturas mais lamentáveis, eu me questiono se vale à pena tanto tempo e esforço investido. E repito: não estou falando de críticas construtivas.
Se os problemas com o público na internet se resumissem a adolescentes ludibriados por sites de proselitismo político e livros mentirosos disfarçados de histórias que supostamente esconderam de você dizendo que você é um doutrinador e tem que “estudar”, já seria um incômodo, mas ao menos isso é algo que qualquer um deve esperar ao se inserir na arena pública. A questão é que, quando você fala sobre temas muito diversos em um longo intervalo de tempo com produção contínua, você adquire experiência, mas cada novo vídeo, texto ou produção em geral é uma nova oportunidade de errar. É uma nova chance de ver sua formação e competência questionadas e consideradas inválidas diante de equívocos que muitas vezes são fruto do fato de que é impossível se especializar em tudo, preencher todas as lacunas e amarrar todas as pontas soltas.
Se você faz parte do não tão seleto grupo de acadêmicos em formação com síndrome de impostor, saiba que a inserção pública é um teste de estabilidade emocional e paciência. Talvez essa seja uma das explicações para o fato de tantas empreitadas de inserção pública por parte de acadêmicos acabam cedo. Claro, não podemos resumir a isso, já que há toda uma questão de motivação baseada em público. O próprio Leitura ObrigaHISTÓRIA dificilmente teria chegado a um ano de existência se não fosse toda a ajuda e divulgação que recebemos dos mais diversos meios, já que durante cerca de oito meses nós tínhamos um público numericamente insignificante para os padrões atuais do YouTube. As dificuldades técnicas, o déficit de conhecimento específico em áreas como edição e tratamento de vídeo, bem como os investimentos financeiros necessários para começar são outros dos fatores que intimidam aqueles que desejam se aventurar no YouTube.
Outro problema é a relação entre volume de produção, demanda e tempo. De você são cobrados o tempo inteiro conteúdos diversos e assuntos que o público quer ver; de um lado, há a cobrança individual de que a produção tenha a melhor qualidade possível; do outro o pouco tempo para fazer um trabalho bem feito, especialmente no YouTube, onde postar vídeos com pouca frequência pode ser uma sentença de morte para seu canal, graças ao algoritmo do site. O resultado é que muitos criadores acabam diminuindo a qualidade do que produzem por não dar conta de fazer um bom trabalho dentro de um tempo mínimo autoestipulado, pelo medo de perder seu próprio público.
E isso acaba alimentando o ciclo. Quanto menos tempo, menos pesquisa; quanto menos pesquisa, maior o número de lacunas e possibilidade de falhas; quanto mais falhas e lacunas, mais críticas. E fica a sensação de que nunca é o bastante. Algumas pessoas lidam bem com isso, outras nem tanto.
A insegurança e a cobrança contínua são coisas com as quais por vezes é difícil de lidar. Nos seus melhores dias, você pode vir a responder uma ou outra, tirar sarro ou ignorar. Nos seus piores dias, você será afetado pelas insinuações de que você não é bom o bastante, como se a perfeição fosse uma meta alcançável. Saber que não há como ser infalível não diminui o impacto de certas manifestações contra a autoestima dos produtores de conteúdo, e tenho plena convicção que não falo só por mim.
E eu falo tudo isso sendo homem, branco, heterossexual e politicamente moderado. Experimentem ver o que outras pessoas que produzem conteúdo e não se encaixam nesse perfil passam, especialmente as mulheres que se inserem nesses espaços para falar sobre História, Política, Economia e afins, só pra citar um exemplo…
Se você quiser entender esse texto como uma continuação de nosso texto sobre a monetização para canais de História, diria que a segunda lição para quem quer produzir esse tipo de conteúdo é: tenha ciência de que seu conhecimento, capacidade intelectual e formação serão permanentemente questionadas, tanto por leigos quanto por pessoas da área. Se você não tiver condições de lidar com isso, pense duas vezes antes de começar. Mesmo agindo de forma enérgica contra alguns tipos de manifestações, como bloqueio de usuários, às vezes algumas pessoas acabam cedendo à pressão psicológica e à insegurança.
Se você não vê a si mesmo atuando nesse campo, não há problema. Assista, leia e apoie seus produtores de conteúdo científico favoritos. Critique de forma construtiva quando achar necessário, elogie quando achar que há merecimento e compartilhe o conteúdo dos mesmos para aumentar seu alcance. Nenhum produtor sozinho chega a algum lugar se não houver público, e o público é uma engrenagem importante para fazer esse trabalho seguir adiante.
Icles Rodrigues