Se quem controla a narrativa, controla a história, seria a ausência de fidelidade histórica nos filmes irrelevante por serem apenas representações?

Há pouco mais de uma década, mais precisamente no ano de 2006, era lançado o filme Apocalypto, ambiciosa empreitada dirigida por Mel Gibson após seu controverso A paixão de Cristo. O filme em questão tinha como objetivo representar uma história que se passava no Império Maia, sem necessariamente informar objetivamente sobre em qual período ela ocorria exatamente.

O filme em questão foi bastante aclamado pelo público geral em, pelo menos, um aspecto: fidelidade histórica. Além do esmero com as locações e figurinos, o filme é inteiramente falado em iucateque maia, o que contribuiu ainda mais com a impressão de que se tratava de um filme extremamente fiel ao momento histórico que buscava representar.

Ocorre que, para os pesquisadores da área, no que concerne à fidelidade histórica, o filme em questão beirava o ofensivo em alguns pontos. Primeiramente, toda a representação presente no filme dá a entender que a história se passa em meados do ano 900, período em que o Império Maia começou a colapsar, já com severos problemas de abastecimento e com as colheitas minguando. No entanto, o filme possui cenas de sacrifícios humanos ocorrendo quase em escala industrial, e em meados do ano 900, os sacrifícios humanos conforme demonstrados no filme não eram praticados pelos maias, que só viriam a praticá-los muito tempo depois por influência dos Astecas, que, naquele momento, mal existiam como um grupo culturalmente influente. Para contribuir ainda mais com a confusão temporal, a película termina (o filme foi lançado há mais de dez anos, reclamar de spoiler aqui é sacanagem) com o protagonista chegando a uma praia enquanto foge de seus algozes e deparando-se com a chegada de navios europeus, algo que só aconteceria em meados de 1511.

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F*da-se a lógica!

Estas são, obviamente, apenas algumas das imprecisões históricas presentes na obra dirigida por Gibson. Não cabe aqui fazer um ponto a ponto dos problemas desta obra; contudo, é importante discutir não apenas a questão da fidelidade histórica dos filmes, mas também a percepção pública sobre os mesmos.

A linguagem audiovisual – e aqui falamos do conjunto da obra, desde suas imagens às trilhas sonoras, as quais também evocam e dialogam com sentimentos – tem um grande poder de diálogo com o espectador. Filmes que buscam tentar reconstituir um período histórico passado têm o poder de causar tamanha impressão no público que certos elementos estéticos tornam-se paradigmáticos de uma época, tendo ou não respaldo na realidade. E não se trata apenas de elementos estéticos visuais. As trilhas sonoras compostas por Ennio Morricone para os Spaghetti Westerns tornaram-se tão icônicas que, para muitos, são imagens sonoras muito mais realistas do Velho Oeste do que, de fato, os tipos de música que eram executados na região durante o período representado, como as músicas folk de forte influência irlandesa ou escocesa, os primórdios do que viria a se tornar o country, entre outras.

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Se você viu o filme, está tocando Morricone na sua mente nesse exato momento.

E por que isso seria uma questão relevante?

Na academia, na área de História e Cinema, as opiniões são divididas. Há quem defenda que, diante do fato de todo filme estar firmemente enraizado em seu presente e ser uma representação – não um retrato, por isso mesmo textos acadêmicos tendem a evitar expressões como “o filme retrata” –, sua fidelidade histórica não seria muito importante. Mais importante do que saber se Marco Polo aprendeu a lutar artes marciais na China enquanto supostamente esteve na corte de Kublai Khan – como representado na série já cancelada que leva o nome do viajante lançada pela Netflix – ou saber se o atentado contra Uday Hussein, filho de Saddam Hussein, foi cometido ou não por seu ex-dublê – como no filme O dublê do Diabo – é saber quais as intenções, posicionamentos, eventos motivadores, ideologias que permeiam a criação e a existência de um filme, série, entre outros produtos possíveis. Nenhum filme seria neutro e isento. Portanto, conhecer suas minúcias em relação ao presente é o que, de fato, importa.

No entanto, é justamente pelo seu poder de encantamento e força de linguagem que filmes, séries e outros tipos de conteúdo audiovisual têm é que a questão da fidelidade é importante. Muitas coisas são melhor assimiladas quando transformadas em conteúdo audiovisual do que, por exemplo, por texto. De fato, pode até ser insignificante saber se a roupa que Hitler usa no momento de seu suicídio no filme A queda: as últimas horas de Hitler é, de fato, uma representação fidedigna dos trajes que o Hitler histórico utilizava no momento em que se matou, ou saber se o modelo de rifle que Vassili Zaitsev usava no filme Círculo de Fogo (Enemy at the gates, de 2001, não o filme de robôs gigantes de Guilhermo Del Toro de 2013) era o mesmo que o Vassili real utilizou na batalha de Stalingrado.

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“E foi assim que os soviéticos venceram em Stalingrado. Ops, filme errado!”

No entanto, certas representações carregam conotações políticas, culturais, ideológicas, filosóficas, e a partir do momento em que são realizadas e absorvidas pelo público como provável representação de uma verdade histórica, mesmo que não sejam, as intenções de quem a produziu passam adiante, usando a história como muleta. Para dar um exemplo, podemos citar o desastroso 1492: a conquista do paraíso, dirigido por Ridley Scott. Lançado em 1992 no ano onde se comemoravam os 500 anos da “descoberta” do continente americano por Cristóvão Colombo, o filme não só é um poço de imprecisões históricas e representações amaciadas de Colombo, como por vezes inclusive inverte a realidade de tal maneira que o filme torna-se uma piada de mau gosto.

Quando a representação não é equivocada ou deliberadamente mentirosa, ela pode pecar pelo desequilíbrio na representação, ou seja: representar um ponto de vista com tamanha ênfase que o torna exagerado, seja reforçando seus aspectos negativos, seja adotando uma atitude condescendente para com o mesmo.

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Ao menos a trilha sonora do filme, composta por Vangelis, é uma das melhores de todos os tempos.

Já que começamos o artigo falando sobre um filme dirigido por Mel Gibson, nada melhor que falar sobre outro filme com participação sua, dessa vez como protagonista: O patriota, uma tentativa de tentar emplacar um novo Coração Valente, mas dessa vez com uma história que se passasse nos Estados Unidos. A quantidade de imprecisões históricas do filme é grande demais para esse artigo: de qualquer modo, é importante perceber que todas as incongruências mais notáveis são, aparentemente em sua maioria, escolhas deliberadas, não erros históricos. Não se trata apenas de equívocos, mas distorções executadas com o intuito de encaixar o filme nas narrativas floreadas dos mitos fundadores dos Estados Unidos, consolidados, em sua maioria, no século XIX. O mito da inocência perdida diante da brutalidade inglesa que iniciou a guerra, o maniqueísmo que mostra os ingleses como carniceiros cruéis em detrimento dos colonos que apenas buscam defender-se da tirania, são algumas das tantas construções históricas românticas tardias que são reforçadas por imprecisões históricas.

Tal romantismo transformou indivíduos em heróis e visionários, sendo essa construção romântica do heroísmo individual muito mais atrativa e construtora de um sentimento de orgulho do que um processo histórico formado por conjecturas e cujo protagonismo é coletivo. A ideia de uma empreitada coletiva contra a opressão estrutural é muito mais perigosa, dependendo de quem busca levar uma determinada narrativa adiante.

Para um olhar mais aprofundado sobre o filme em questão, recomendamos a excelente obra Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos, de Ray Rafael, disponível em português.

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This is ‘Murica!

Certamente que, analisando o filme à luz de seu momento de criação, muitos dos problemas do filme são explicados. Mas, para a maior parte do público, são as imagens evocadas na película que marcam. São elas que abastecem as retóricas públicas sobre os eventos, até mais do que livros de história, cujo público é mais seleto e, por vezes, menos interessado – se pensarmos em livros didáticos e muitos dos alunos que os possuem, os quais não necessariamente ligam para seus livros, vistos como um tipo de “imposição escolar”.

Obviamente que o ideal seria uma sociedade onde o público está devidamente preparado para não se deixar levar pelos sentimentos evocados por qualquer obra advinda da indústria cultural e para analisar as obras criticamente. No entanto, não podemos esperar por tal cenário. Portanto, creio que é importante que os historiadores – e eu me incluo neste pacote, obviamente – atentem para este tipo de questão. Como o autor anteriormente citado, Ray Raphael, afirma no fim de seu livro:

“Quem controla a narrativa, controla a história. Essa é uma mensagem poderosa. Os que a ignoram permanecerão cegos para a manipulação dos outros, mas os que a aceitarem […] serão capazes de questionar o abuso de autoridade e assumir o controle do seu destino.”

Diante da importância e da força que a indústria do entretenimento tem em nossas vidas neste século XXI, não devemos subestimar o impacto destes produtos nas sociedades com as quais eles se relacionam. E se os mesmos bebem de conteúdo histórico, é dever dos historiadores atentar para seu conteúdo. E, neste caso, a questão da fidelidade histórica – ou falta dela – não deve ser apenas um elemento contingencial, pois se uma mentira contada mil vezes pode ser vista como verdade, uma representação equivocada assistida mil vezes têm o mesmo resultado.

 

O texto acima foi publicado originalmente em 2017 no site original da Voyager. Atualmente, a revista pode ser encontrada em novo endereço, clicando aqui.