Livro conta como se construiu a mitificação do Dia D e quais as razões disso
Há alguns anos, enquanto pensava em mudanças para o canal Leitura ObrigaHISTÓRIA, estava buscando temas do meu interesse que eu poderia tratar em vídeos curtos, de aproximadamente cinco minutos, e a primeira ideia que me veio à mente foi: e se eu fizesse um vídeo sobre como o Dia D passou a ser idolatrado?
Ocorre que na época eu tinha apenas uma suposição: de que isso era fruto do aniversário de 50 anos do Dia D, uma vez que esse evento aparentemente inspirou Steven Spielberg a produzir e dirigir O Resgate do Soldado Ryan, um dos mais influentes filmes de guerra da história. Seguindo essa linha de raciocínio, escrevi um roteiro que nunca se concretizou. Mas a questão nunca me saiu da cabeça.
Eis que anos depois eu decidi que queria investigar isso, e foi aí que descobri que minha hipótese inicial estava errada. A mitificação do Dia D não havia começado em 1994, mas sim uma década antes. E mesmo esse pontapé inicial não surgiu no vácuo. E foi dessa curiosidade que surgiu o livro que estou lançando em 2024 chamado O Dia D: como a história se tornou mito, pela Editora Contexto.
O que foi o Dia D?
Historicamente o termo “Dia D” era usado como uma maneira de se referir a alguma data de operação militar específica. Isso acontecia porque ao se referir à data em questão apenas como “dia D”, você impede que seu inimigo saiba qual a data em questão no caso de interceptação de comunicações. As pessoas que têm que saber qual é o dia já sabem.
No entanto, depois da Operação Overlord e da invasão da Normandia no dia 6 de junho de 1944, a maior operação anfíbia da história, esta expressão ficou permanentemente atrelada a esta data.
O objetivo desta invasão era abrir um segundo front de batalha contra a Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o front original as regiões do leste europeu onde o Eixo e a União Soviética já guerreavam desde 22 de junho de 1941 quando os alemães coordenaram a Operação Barbarossa, a maior invasão da história, com um contingente humano de mais de 3 milhões de pessoas.
Os Aliados ocidentais da União Soviética (Estados Unidos e Grã-Bretanha) já tinham derrotado os alemães e italianos na África, e a partir dali invadiram a Sicília e depois o sul da Itália, mas este não era o front que o líder soviético Josef Stalin vinha pedindo desde 1941. O teatro italiano era bastante complexo, moroso, e sua geografia favorecia muito o trabalho dos defensores. Quando o governo italiano se rendeu aos Aliados e destituiu Mussolini do poder, os alemães invadiram a Itália e ocuparam grande parte do seu território que, por ser montanhoso, permitia que os alemães o defendessem com contingentes menores posicionados nas inúmeras posições elevadas disponíveis, e isso pouco ajudou a diminuir o número de tropas alemãs atacando os soviéticos.
Entre os Aliados houve muita discussão sobre quando haveria uma invasão na Europa ocidental, mas a proposta defendida pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill venceu, e a invasão ocorreu na Itália para garantir a segurança do Mediterrâneo para que a Grã-Bretanha não perdesse seu precioso contato com suas colônias asiáticas, em especial a Índia, de onde muitas riquezas eram extraídas e enviadas à metrópole pelo Canal de Suez, passando pelo Mediterrâneo e o Estreito de Gibraltar.
Mas era inevitável que um segundo front fosse aberto na Europa Ocidental, e eis que depois de muitas discussões e atrasos, se decidiu por uma invasão em junho que, após mais atrasos por conta das previsões meteorológicas catastróficas, aconteceu em um pequeno intervalo de tempo propício em 6 de junho de 1944.
A invasão logrou estabelecer uma cabeça de praia no norte da França, e a despeito de alguma dificuldade por parte dos Aliados para conquistar alguns objetivos importantes como Cherbourg e Caen, essa vitória garantiu que os Aliados contribuíssem com a libertação da França e avançassem contra os alemães.
A construção do mito
Ainda que tenha sido uma batalha muito importante e tenha ajudado a acelerar o fim da guerra, hoje o Dia D é tratado por muitos como uma batalha que teria “virado o jogo da guerra”, “salvado a democracia”, “salvado a Europa” ou até mesmo “salvado o mundo”, e isso principalmente graças aos esforços empreendidos nos Estados Unidos. Mas não foi sempre assim.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, as comemorações sobre o Dia D em geral foram tímidas. Nos Estados Unidos as pessoas não estavam no clima de comemorar eventos de uma guerra que matou quase meio milhão de cidadãos de seu país. Na França, muito se ressentia sobre as enormes perdas humanas, a destruição de algumas cidades francesas por bombardeios Aliados majoritariamente ineficientes e mesmo o comportamento de muitos soldados Aliados que saquearam sem dó os já sofridos civis que vivam na Normandia, tratada durante a invasão como um grande efeito colateral.
Nas décadas seguintes foram esboçados alguns vislumbres do louvor que vemos hoje, especialmente depois do lançamento do livro O mais longo dos dias, do jornalista irlandês Cornelius Ryan. O livro, um best-seller, inspirou um filme de mesmo nome em 1962, com um elenco estelar para a época, ainda que ele fosse mais um entre dezenas de filmes de Segunda Guerra lançados entre os anos 1950 e meados dos anos 1970. Além disso, em 1964 o ex-presidente e ex-Comandante Supremo das Forças Aliadas Dwight D. Einsehower visitou a Normandia para um especial televisivo do aniversário de 20 anos do Dia D, mas aos poucos esse evento foi ficando em segundo plano conforme os Estados Unidos foram se envolvendo na situação do Vietnã e conforme a população estadunidense foi se dividindo nas suas opiniões sobre as Forças Armadas.
Outros filmes que deram destaque para este evento como O Dia D (1956) e Agonia e Glória (1980) são bons exemplos de como o Dia D ainda não tinha atingido o patamar que tem hoje. No primeiro deles o 6 de junho é apenas um pano de fundo para um triângulo amoroso açucarado; o evento é tão secundário que o que vemos é uma Força Especial Seis que nunca existiu realizando uma pré-invasão que nunca aconteceu em uma praia fictícia sem nome mostrada em um mapa que pouco se parece com a costa da Normandia, tudo isso para destruir um canhão que também nunca existiu. Já em Agonia e Glória, filme parcialmente biográfico dirigido por Samuel Fuller, um ex-combatente que participou da invasão da Praia de Omaha, o que temos é um Dia D que não dura mais do que dez minutos e, ainda que seja mostrado como tendo sido responsável por muitas perdas, é apenas um dos vários episódios que o filme representa, que vão do norte da África à libertação de um campo na Tchecoslováquia. Após a cena do Dia D, os soldados são visto praticando esportes, lendo, escrevendo e discutindo amenidades. Não há discursos heroicos ou grandes lamentos pelos caídos: a invasão de Omaha foi apenas mais um trabalho, ainda que dos mais perigosos.
A coisa muda de figura de maneira significativa quando Ronald Reagan é eleito presidente dos Estados Unidos. No aniversário de 40 anos do Dia D em 1984 o staff da Casa Branca preparou um grande evento que se encaixava na campanha de reeleição de Reagan. Naquela quarta-feira, na presença de ex-combatentes do Dia D e seus familiares à beira do penhasco de Pointe Du Hoc, Reagan fez um de seus discursos mais famosos, realizado em um horário bem especifico para que fosse transmitido ao vivo na TV estadunidense, e posteriormente proferiu outro discurso perto do cemitério estadunidense de Colleville-sur-Mer, próximo à Praia de Omaha.
Ali foi dado o pontapé inicial para a mitificação do Dia D que conhecemos hoje. Mas ela não acabou ali. Outras pessoas contribuíram para a consolidação dessa mitologia política, desde Bill Clinton a Stephen Ambrose e Steven Spielberg, entre outros. Além dos discursos presidenciais, os livros de Ambrose e Tom Brokaw, o filme O Resgate do Soldado Ryan, a série Band of Brothers e os jogos eletrônicos Medal of Honor e Call of Duty tiveram um enorme impacto na globalização do mito.
Isso e muito mais é o que você encontra no livro O Dia D: como a história se tornou mito. Ele já pode ser adquirido em pré-venda no site da Editora Contexto ou pela Amazon, clicando aqui.