Desde o fim de 2018, especialmente após os resultados das eleições, tenho visto manifestações frequentes de indivíduos assustados com o número gigantesco de meios virtuais por onde pseudociência, charlatanismo, revisionismo histórico e – principalmente – as famigeradas fake news se proliferam. E em várias dessas manifestações paira a dúvida: o que fazer para combater esse tipo de coisa?

Há uma série de possíveis respostas sendo oferecidas por todos os cantos, mas uma delas diz respeito à ocupação dos espaços virtuais por profissionais e pessoas qualificadas nas mais diferentes áreas do conhecimento, de modo a confrontar gurus disfarçados de filósofos, revisionistas desqualificados disfarçados de autoridades, terraplanistas, grupo antivacina, entre tantas outras aberrações antiacadêmicas.

Superficialmente falando, a ideia soa muito boa. Afinal de contas, se toda essa histeria coletiva teve a contribuição de agitadores desqualificados e gente engajada em atacar consensos acadêmicos inconvenientes para suas agendas políticas, a resposta seria dar o troco trazendo uma tropa de sujeitos qualificados para estes espaços, certo?

Não necessariamente. E o objetivo do texto é dar uma perspectiva de por que essa estratégia poderia dar errado, ao menos se for a única. Em alguns pontos ele dará a impressão de que eu estou advogando em causa própria, mas creio que os argumentos que apresentarei são suficientemente convincentes para que esse texto se sustenta por si só, com ou sem supostos interesses pessoais envolvidos.

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1) Conhecimento técnico e recursos materiais

Quando se trata de produção de materiais para internet, cada um deles terá suas próprias exigências técnicas. Por exemplo: se você quer atrair público a partir de memes, é necessário ao menos um conhecimento básico de edição de imagem, além da posse de softwares capazes de realizar o que você deseja.

Mas no caso do YouTube, que é um dos espaços onde mais se espera pela ocupação de especialistas (por conta do alcance da plataforma), há exigências envolvidas. É necessário ter o equipamento para captação de áudio e vídeo, iluminação, local para gravação, entre outros tantos elementos. Fora isso, ainda há outras questões a serem levadas em consideração, como: você se dá bem com a câmera o suficiente para que te assistam? Está disposto a aprender e melhorar? Sabe editar vídeo ou ao menos tem tempo para aprender? Tem certeza de que terá pauta para muito tempo de produção? Consegue produzir com alguma frequência fixa?

Nem todos os possíveis futuros produtores de conteúdo têm condições de realizar esse tipo de trabalho, e outros tantos só podem fazer as coisas de maneira tão cambaleante que os aspectos técnicos primários podem acabar afastando uma audiência em potencial, cada vez mais acostumada com o primor técnico de canais que se profissionalizam. Isso nos leva ao segundo ponto.

2) Exigências das plataformas

Os ambientes virtuais por vezes soam convidativos, dada a autonomia que eles proporcionam aos produtores de conteúdo. Como uma tela em branco, eles dão as ferramentas para que o produtor, com seu conhecimento e criatividade, gere conteúdo para tentar atingir a um público carente de boa informação. Ocorre que é uma ilusão achar que a mera produção é suficiente, especialmente quando o objetivo é atingir grandes públicos para desmontar charlatanismos.

Cada plataforma oferece diferentes recursos aos produtores, mas também carregam exigências para que as empreitadas sejam bem sucedidas. Páginas de Facebook dependem de compartilhamentos em massa, e nem sempre isso é atingido. Para páginas que não são voltadas ao humor ou fotos e vídeos de animais fofos, isso é consideravelmente difícil de atingir, e aí entra outro aspecto do Facebook em jogo: anúncios.

O Facebook diminui drasticamente o alcance de TODAS as postagens de páginas, que são o principal tipo de iniciativa dentro do Facebook voltada para espalhar ideias. Para se atingir públicos mais vastos, é necessário pagar, e aí entra a questão do investimento financeiro, que muitas vezes não dá retorno.

O caso do Facebook é apenas um exemplo. Poderia citar o YouTube, que é a plataforma com a qual estou mais acostumado, e nela também há uma série de parâmetros fundamentais para se obter sucesso em empreitadas com objetivos definidos desde a concepção do que será produzido nela. Há uma série de pequenos detalhes a serem levados em consideração quando se produz vídeos constantes para o site, como frequência, retenção de público, tempo de vídeo, estética, público alvo, linguagem… É mais complicado do que parece em um primeiro momento.

E aí eu chego ao ponto que gostaria de chegar: cada plataforma tem uma série de exigências que não necessariamente toda essa nova leva de pessoas gabaritadas estariam dispostas a cumprir. E sem essa disposição, a maioria das empreitadas do tipo está fadada a morrer na praia, o que me leva ao terceiro ponto.

3) Audiência e motivação

Já existem canais, blogs, páginas de Facebook e afins destinadas à produção de conteúdo, com graus de qualidade discrepantes entre si. No entanto, em qualquer área das ciências que você procurar com cuidado e sem pressa, você encontrará iniciativas de boa qualidade que já estão em andamento. E na modesta opinião deste que vos fala, que observa e participa desse panorama há anos, apoiar as boas iniciativas que já existem pode ser mais eficiente do que incentivar a entrada de dúzias de novos canais. E tenho alguns motivos para fazer essa afirmação.

Há muita gente com um potencial incrível que está fora das redes sociais, e cuja entrada nesse mundo virtual faria um enorme bem para sua área de atuação. Gente competente, com condições de aprender, criar conteúdo de qualidade, visualmente interessante, com potencial de atração de novos públicos, e é importante que esse tipo de profissional ocupe esses espaços.

Só que, por outro lado, a grande maioria dos estudantes, formados e afins que atuam em diferentes áreas do conhecimento não necessariamente se dá muito bem com a produção audiovisual. Mais ainda: são pessoas que, muitas vezes, não têm tempo de produzir esse material com qualidade e frequência, não por falta de competência, mas pelo acúmulo de afazeres, trabalho e outras responsabilidades em suas vidas cotidianas.

Fora isso, ainda temos o problema de que quase todo novo canal leva muito tempo para começar a criar uma audiência significativa e cativa. Não é raro que canais comecem e desapareçam porque depois de seis meses, um ano, dois anos ou até mais tempo de trabalho, não foi possível conseguir uma audiência que justificasse a manutenção da empreitada – e isso não apenas na área das ciências. A audiência é uma das coisas mais importantes para todo produtor de conteúdo, e sem ela, fica a sensação de que você está falando com as paredes, e que o retorno do seu trabalho não compensa o esforço e investimento feito nele. Logo, ocorre a desistência.

Eu mesmo sou um exemplo disso. Vinha pensando em desistir do canal, pois após nove meses de trabalho constante e frequência, a audiência do canal permanecia baixíssima, contando com 192 inscritos. Foi aí que o Leitura ObrigaHISTÓRIA foi divulgado em duas páginas grandes de Facebook, chegou aos 800 inscritos em menos de 48 horas e aos poucos o crescimento passou a ser orgânico e constante. Aí eu pergunto: quantos canais por aí morrem porque não tiveram a mesma oportunidade que tive de chamar atenção de gente que poderia divulgar meu trabalho? Certamente muitos, e tantos outros terão o mesmo destino.

Outro motivo pelo qual penso valer mais à pena apoiar quem já está na empreitada é o fato de que, quem já está atuando já lhe oferece elementos para perceber quais trabalhos são mais sólidos, consistentes, periódicos e efetivos. E isso é importante porque muitos veículos de desinformação têm centenas, milhares ou mesmo milhões de seguidores, vasto alcance, influência e, muitas vezes, condições financeiras que facilitam seus projetos. Em outras palavras, assim como a pseudociência tem vários produtores de conteúdo minúsculos, ela tem seus gigantes. São eles que têm mais força em propagar charlatanismo.

E quantos gigantes nós temos?

Nesse ponto eu gostaria de me ater à minha área de atuação, que é a História, mas ampliando para as Ciências Humanas. Quantos canais de YouTube realmente grandes e influentes sobre Ciências Humanas você conhece, com, no mínimo, 500 mil inscritos, um bom número de vídeos com muitas visualizações, e afins? E quantos passaram da marca de um milhão de inscrições?

Eles existem? Sim. Mas sejamos realistas: são poucos. E alguns canais que falam desses assuntos, embora grandes, são tocados por produtores que não têm especialização na área, e fazem muito mais por gosto pessoal do que por qualificação profissional, o que muitas vezes resulta em produtos de qualidade duvidosa. Logo, fica o questionamento: por que não apoiarmos os projetos já em andamento e que demonstram concretamente a possibilidade de sucesso a médio e longo prazo?

E por que isso é importante?

Porque os gigantes têm muito mais alcance de público, e consequentemente quebram a barreira que muitos produtores pequenos jamais alcançam: furar as bolhas. Quando você têm muitos canais pequenos e poucos canais maiores, o risco de todas essas iniciativas acabarem falando para uma audiência fragmentada e difusa, aumenta. Pior ainda: normalmente só quem já se alinha ao discurso de um canal pequeno o segue, ao contrário de canais grandes que conseguem chegar a públicos não necessariamente alinhados, mas que acabam tendo disposição para ouvir o que eles têm a dizer, seja por valor de produção, pela credibilidade atrelada ao sucesso, entre outros motivos.

E isso leva ao nosso último ponto: como apoiar essas iniciativas?

4) Formas de apoio

Quando se fala em apoio a canais e afins, a primeira coisa que passa na cabeça de muitos é o dinheiro. E, de fato, esse é um fator importante. Especialmente no caso da produção audiovisual, é necessária a obtenção de equipamentos de vídeo, som, edição, iluminação e afins. Obviamente que é possível fazer as coisas de forma mais “artesanal”, como usar filmar com celulares no próprio quarto com luz natural. Não há absolutamente nada que diga que essa forma de produzir está errada, mas minha experiência no YouTube demonstra que uma estética mais sofisticada que demonstra profissionalismo passa credibilidade ao público, e isso é um fator de atração de audiência. Mas para isso, é necessário verba.

Atualmente, um dos tipos mais comuns de renda para produtores de conteúdo no YouTube é o site de crowdfunding, que permite ao público estipular um valor de doação mensal. Assim, indivíduos podem doar um valor fixo mensalmente – normalmente via cartão de crédito ou boleto – e, juntando os apoios de dezenas, centenas ou mesmo milhares de espectadores, um produtor pode não apenas investir na qualidade técnica do canal, mas às vezes torna-lo seu emprego em tempo integral, dando a ele oportunidade de se dedicar exclusivamente à pesquisa e produção de conteúdo (deixarei, como exemplo, a página de crowdfunding do meu canal para aqueles que não sabem como isso funciona). Poder trabalhar pesquisando dentro de sua própria área e fazer os frutos dessa pesquisa chegar ao público é o sonho de muitos acadêmicos, e esse ambiente oferece essa possibilidade. Mas a capacidade de colaboração financeira da audiência tem seus limites; logo, é importante escolher com carinho os projetos que se decide apoiar.

Mas não se trata apenas de dinheiro. Outras formas de apoio dizem respeito a divulgar os vídeos para outras pessoas, usa-los em sala de aula, e até mesmo atitudes simples como curtir e comentar nos vídeos são importantes, não apenas por ajudar o algoritmo do YouTube a entender o vídeo como relevante, mas também aumentar o moral do produtor de conteúdo, que desta forma estará mais propenso a produzir mais.

No compartilhamento, certifique-se de que você não está apenas copiando e colando links. Comente um pouco o que você acha daquele material, diga o motivo de você estar compartilhando-o, direcione o conteúdo sugerindo quem são as pessoas que deveriam assistí-lo, etc. Se você é professor, passe para outros professores, que por sua vez podem usar os vídeos como materiais didáticos. Se você é aluno, passe para seus colegas, de modo que eles possam estudar pelo material em questão. Estes são exemplos do que, na área do Marketing, se chamaria de público qualificado, o público interessado naquilo. No mercado, o público qualificado é aquela pessoa que, ao ser alcançada pela propaganda direcionada, se torna um cliente ou consumidor. No caso da divulgação científica, o público qualificado é aquele que, ao ter contato com sua produção, decide te acompanhar para ver o que mais você tem a oferecer no futuro.

E mais ainda: se você faz parte da academia em qualquer posição, seja lá qual for, não desestimule ou desqualifique bons produtores de conteúdo acusando-os de “vulgarizar o conhecimento”. Toda vez que, do alto de sua arrogância alimentada pelo ambiente egocêntrico da torre de marfim, você diminui uma boa empreitada de divulgação científica, charlatões e sujeitos que fazem a cabeça das pessoas a acharem que investimento em ciência é desperdício de dinheiro crescem e aumentam seu potencial de manipulação.

Não adianta choramingar pelo crescimento desse tipo de charlatanismo se toda vez que aparece alguém disposto a bater de frente com ele, você desmerece a pessoa. Não adianta reclamar da diminuição dos investimentos na educação se você ridiculariza empreitadas que buscam conscientizar a população dos perigos do desestímulo de investimento público em educação em detrimento da “financeirização” do conhecimento. É contra os propagadores desse tipo de aberração que muitos produtores de conteúdo estão na luta, e pensando à longo prazo, seu desdém pode contribuir para sua ruína.

Nessas horas me vejo obrigado a usar um tipo de argumento que detesto, mas que se aplica ao caso: não gostou? Faça melhor! Mas considere tudo o que eu falei acima. Caso contrário, fique no seu canto. Faça críticas construtivas com respeito e educação, pois elas ajudam no crescimento da qualidade da empreitada. Mas se você não pode contribuir de forma construtiva, fique na sua torre de marfim. Você não aguentaria cinco minutos aqui embaixo no mundo real.

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Conclusão

Não me entendam mal; eu não acho que as duas iniciativas são excludentes. É plenamente possível apoiar os veteranos ao mesmo tempo em que chamamos os novatos a fazer parte dessa empreitada. No entanto, me incomoda a possibilidade de que vários novos talentos sejam seduzidos pela possibilidade de suceder em empreitadas de divulgação científica e, depois que ela começa, sejam decepcionados pela solidão de falar para públicos ínfimos. Não basta clamarmos a entrada de novos cérebros no mundo virtual e, depois que estes entram no jogo, abandoná-los à própria sorte.

Portanto, identifiquem canais, blogs, páginas de Facebook e afins que já estão na ativa, fazem um bom trabalho e têm potencial para crescer, e apoiem essas iniciativas. O sucesso delas atrairá novos cérebros quando estes perceberem que há público e que este trabalho pode valer à pena.