Produções milionárias fazem uso de pesquisas históricas que levam anos para ficar prontas. Seus autores comumente não são sequer citados, menos ainda são pagos. E qual o problema nisso?

Em 2019 estreou no canal de TV HBO a minissérie Chernobyl, que em seus cinco episódios representou o acidente com a usina de mesmo nome na antiga União Soviética. Aclamada por público e crítica, a empreitada televisiva tornou-se a série mais bem avaliada da história do site Internet Movie DataBase, ou IMDB, que compila notas de críticos e usuários ao redor do mundo. A série desbancou nomes de peso, entre eles a também aclamada minissérie da HBO, Band of Brothers, produzida por Steven Spielberg e Tom Hanks, e inspirada na obra do historiador Stephen Ambrose.

Ambas minisséries, inspiradas em eventos históricos, aclamadas por crítica e público e produzidas pela HBO; ou seja, vários aspectos em comum. No entanto, além dos 18 anos entre um lançamento e outro, há um outro fator que as distingue: enquanto a minissérie de 2001 fez questão de trabalhar de perto com a consultoria de Ambrose e seus créditos sempre foram atribuídos, a série da HBO, cujas subtramas bebem parcialmente da obra Vozes de Tchernóbil da jornalista Svetlana Aleksiévitch, não deu absolutamente nenhum crédito à autora.

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Svetlana Aleksiévitch

Uma das principais subtramas envolvendo um bombeiro e sua esposa, que atravessa os quatro primeiros episódios, só para citar um exemplo, foi retirada inteiramente da obra de Aleksiévitch. O livro em questão é um compilado de dezenas de entrevistas feitas pela autora, assim como outros de seus livros como A guerra não tem rosto de mulherAs últimas testemunhas, e a despeito de todo o trabalho que ela teve de encontrar sobreviventes e fazer as devidas entrevistas foi sumariamente ignorado, haja vista que os responsáveis por Chernobyl aparentemente não acharam que era relevante creditá-la.

Talvez esta minha última afirmação possa ser tomada como leviana. No entanto, é difícil não ser contagiado pela leviandade quando você está consultando exemplos de pesquisadores – incluindo historiadores como eu – que tiveram seus trabalhos usados como pedras angulares no desenvolvimento de roteiros para produções de sucesso sem ter sido remunerados ou sequer creditados.

Uma das poucas alternativas de trabalho que temos para além da docência, e que ainda assim é uma alternativa muito pouco frequente, é a consultoria para trabalhos de representação histórica baseada em períodos ou eventos sobre os quais pesquisamos. Mas é extremamente comum que os profissionais da área sejam tratados como seres que se alimentam de luz e que têm a obrigação de prestar consultoria e esclarecimento para obras televisivas ou cinematográficas com cifras exorbitantes sem, contudo, receber um centavo pelo trabalho.

Trabalho: essa palavrinha mágica que, supostamente, muitas pessoas não gostam de atribuir ao que fazemos, é a chave para entender esse descontentamento.

Nos últimos anos, o número cada vez maior de programas televisivos cujas tramas bebem de eventos históricos e personagens famosos da história humana tem, consequentemente, gerado demanda pelas pesquisas referentes aos assuntos representados em tela, que servem de fonte para estas mesmas produções. Em teoria, isso deveria ser uma oportunidade de trabalho para dezenas de historiadores, certo?

Não necessariamente. Na verdade, o número de autores e autoras manifestando seu descontentamento com o aparente desdém dessas produções por seu trabalho tem aumentado.

De acordo com uma matéria publicada no The Guardian, publicada em fevereiro de 2019 e escrita por James Tapper, a Sociedade de Autores (um sindicato britânico formado no século XIX) argumenta que o número de reclamações de membros cujos trabalhos foram usados na TV sem créditos ou pagamento só cresce.

As reclamações variam; alguns autores afirmam ter sido deixados de fora dos créditos de um programa depois de contribuir diretamente com pesquisa durante semanas; outros afirmam que seus livros inteiros foram usados como base para programas. Muitos membros da sociedade argumentam que o correto e ético a se fazer seria ou pedir permissão para o uso da obra, ou o pagamento pelos direitos de uso, relativos a todos os meses ou anos de pesquisa que resultaram na obra utilizada.

Uma das profissionais que questiona a situação baseada em sua própria experiência é Lyndsy Spence, uma historiadora especializada em biografias de mulheres aristocratas. Ela afirma que os criadores da série Secret History: Churchill’s Secret Affair lhe pediu ajuda depois de descobrirem que seu livro The Mistress of Mayfair, biografia da socialite Doris Delevigne continha trechos de seu caso com o ex-primeiro ministro britânico.

Sabendo que o livro seria usado de qualquer maneira e sob a promessa de agradecimentos especiais, a historiadora contribuiu respondendo perguntas por e-mail e verificando cartas, fotografias e outras fontes. Resultado: nenhuma menção de seu trabalho, a despeito de todo o esforço de pesquisa da autora para produzir a primeira biografia de Doris Delevigne. “Nossas notas de rodapé servem de mapas do tesouro para esses produtores. É muito frustrante”, afirmou Spence. O produtor da série se defende, pedindo desculpas pelo equívoco, mas afirmando que a revelação do caso de Churchill presente na obra televisiva veio do trabalho de outros dois acadêmicos pesquisadores da vida de Churchill, Richard Toye e Warren Dockter.

A experiência de Spence, como a essa altura do campeonato você já deve ter notado, não foi uma experiência única. Hallie Rubenhold questionou o uso do seu livro The Covent Garden Ladies como inspiração para a série Harlots. Após suas reclamações, Rubenhold passou a ser creditada como inspiração para a série, e seu caso aumentou a atenção da Sociedade de Autores sobre o assunto, buscando novas alternativas não apenas de diálogo, mas de negociação com produtores de TV.

E mesmo em casos onde há remuneração pode haver falcatrua. Miranda Carter, novelista e biógrafa do espião Anthony Blunt, afirma que uma amiga foi paga para uma consultoria a uma série de três partes baseadas em seu livro, e após essa contribuição, o apresentador da série em questão escreveu um livro plagiando descaradamente a autora para “acompanhar a série”, tentando capitalizar em cima do lançamento.

Há iniciativas que tentam impedir esse tipo de situação. Nigel Hetherington, um arqueólogo fundador do Past Preservers (uma consultoria que representa 1.200 acadêmicos e especialistas para programas de TV) afirma que não deixa nenhum dos seus associados trabalhar de graça mesmo para produções de baixo orçamento, e que o preço de uma consultoria pode variar entre £100 e £1.000 libras por dia. “O operador de câmera, o pessoal da sonorização, eles não trabalham de graça”, afirma Hetherington.

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Há casos e casos, é verdade. Um profissional pode prestar consultoria a um projeto pelo mero prazer de fazer parte dele, por engajamento político, por querer que o produto tenha fidelidade histórica, entre tantos outros fatores. É difícil esperar que todos os profissionais tenham a mesma postura diante de uma situação como essa, e o mesmo acontece com várias outras profissões. Há o mesmo tipo de debate em áreas como fotografia, design, ilustração, entre outras, ainda que cada debate tenha suas próprias particularidades e os argumentos variem.

O fato é que profissionais que trabalham com seu conhecimento adquirido tendem a ser tratados como pessoas que têm o dever de oferecer este conhecimento sempre de forma gratuita. Como se não bastassem as escassas oportunidades de trabalho e o descaso em termos de prestígio social e remuneração para a vasta maioria, o que temos a oferecer é tratado como algo que não deveria sequer ser cobrado.

Há o argumento de que a história não pertence a ninguém e que,  portanto, não deveria ser necessário pagar pelo direito de adaptá-la. Se por um lado a história, de fato, não pertence a historiadores e historiadoras, por outro lado a pesquisa feita por esses profissionais envolve o investimento de tempo, trabalho intelectual, e se a pesquisa não é financiada pela iniciativa privada ou agência de fomento, envolve até investimento financeiro por parte do pesquisador. E quanto mais original e pertinente a pesquisa é, mais ela deveria merecer créditos e até mesmo o pagamento pelo uso de informações derivadas das descobertas e conclusões apresentadas na obra. Se por um lado a história não pertence à ninguém, o trabalho intelectual analítico e interpretativo de um profissional lhe pertencem. Ou ao menos deveriam pertencer.

Os exemplos citados são estrangeiros. Eu não saberia informar os detalhes de como isso acontece no Brasil, e dado o desconhecimento, é melhor não fazer suposições. No entanto, o panorama mundial deveria ser encarado como um problema por todos nós, já que o descaso no exterior tendem a ser emulado por aqui em diversas áreas profissionais.

Não seria o caso de termos debates mais amplos sobre o assunto? Claro que no Brasil as produções com temas históricos são mais escassas do que em países como EUA e Inglaterra, mas ainda assim, é importante considerar esse nicho. A falta de créditos pelo nosso trabalho às vezes atinge até mesmo as matérias jornalísticas, que muitas vezes consultam profissionais da história para a formação das mesmas, sem que a consultoria seja creditada. Isso para não mencionar atitudes antiéticas, o que abre caminho para toda uma segunda discussão à respeito, que pode ficar para outro dia. Por enquanto fica a reflexão sobre o que passamos, na esperança de fomentar uma discussão que busque alternativas e soluções.